"Todo mundo fala que eu sou meio Forrest Gump, assim. Eu tenho muita história pra contar", relata Marwa el-Hage. Santista, muçulmana sunita, filha de libaneses e refugiada da Guerra do Líbano de 2006, ela se tornou uma figura singular nas redes sociais. Singular. Sozinha, não.
Com trabalhos para veículos como Peleja, FIFA e CBF, el-Hage soma mais de 100 mil seguidores em Twitch, Instagram e Twitter. E, de fato, ela tem muita história para contar.
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Sua história é uma daquelas que precisa de contexto. “Acho que pra entender a minha vida, se eu puder voltar, você tem que voltar em 82. Quando ocorre a primeira guerra Israel e Líbano”, afirma.
“O meu pai e os meus tios eram organizados na Organização de Libertação da Palestina, do Yasser Arafat”, disse. Ela relata que, aos 16 anos, seu pai entrou na lista de alvos de Israel. Em uma fuga de cinema - escondido em um caminhão de batatas - ele chegou ao Brasil.
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Entre 82 e 98 - ano de nascimento de Marwa -, os Hage foram e voltaram do Brasil para o Líbano em diversas ocasiões. No Brasil, o pai dela aprendeu diversas coisas, incluindo o amor pelo Santos Futebol Clube. Nessas idas e vindas, seus irmãos - também santistas - nasceram no Líbano, mas ela nasceu no Brasil.
O eterno retorno marca a história de sua família. “A situação do Líbano é a diáspora eterna”, afirma. “A gente tá sempre indo embora. Eles [meus pais] não queriam ficar aqui. E eles foram ficando. Até hoje, eles querem voltar. Então, a vontade deles de voltar é eterna”, contou.
Em 2006, Marwa foi para o Líbano. Viu a Copa do Mundo de 2006 no Oriente Médio. Ela, seus irmãos e sua mãe iam retornar de vez. “Antes, fomos na 25 de março. Socamos a nossa mala de coisas. E o Brasil perde. Aí, a gente fica lá no Líbano. E aí, não dá um mês. Um mês e pouquinho da nossa estadia lá”, contou à Fórum. A guerra de 2006 começa.
8 anos e uma guerra
“Eu lembro de acordar às seis da manhã. Minha porta na frente da TV. Eu lembro de tudo. É tudo muito vivo na minha memória. Eu tinha oito anos”, descreveu a comunicadora.
12 dias depois da eliminação do Brasil, em 12 de julho, Israel invade o Líbano sob o pretexto de um ataque do Hezbollah. Estima-se que 1191 civis libaneses morreram e mais de 4 mil tenham sido feridos na guerra. A capital do país, Beirute, foi atingida pelos ataques israelenses.
“Eu não sei dizer pra você quantos dias de guerra a gente viveu. Eu não sei. Teria que ver com a minha mãe. Mas os 15 dias... Foi bastante tempo. Porque as pessoas não entendem que 15 dias de guerra é uma coisa intensa”.
De lá, ela e sua família foram para um país vizinho. “Eu lembro do calor da Síria. Eu lembro do trânsito da Síria”. Lá, eles viveram por dias em uma escola utilizada como campo de refugiados. Foram evacuados em um voo realizado pela Força Aérea Brasileira.
A memória ainda é vívida, 17 anos depois. “No meu voo, eu tenho uma prima que eu não tenho contato com pessoa que se chama Marwa El-Hage, igualzinho a mim. Igualzinho a mim. Ela veio no meu lugar no voo. E eu vim sobrando no voo. Então, eu dividi poltrona pra voltar pro Brasil”, diz. “Eu lembro até da poltrona que eu dividi pra chegar aqui com uma criança aleatória”.
"Eu sabia que era mentira"
"Eu fui entender melhor o que eu tinha vivido a partir dos meus oito anos. A minha mãe falava assim pra gente. Tudo que você vê na TV é mentira. Ela falava assim. Tudo que você vê na TV sobre Israel é mentira. E eu sabia que era mentira porque eu tinha vivido", contou Marwa.
A comunicadora relata que parecia haver algo de estranho justamente por conta desse conhecimento. O orientalismo replicado no Brasil sempre taxou os árabes de violentos, as questões do Oriente Médio como “uma guerra de loucos”. Mas Marwa sabia que isso era mentira.
Durante o atual conflito entre Israel e palestinos, a Federação Árabe Palestina do Brasil reclama por falta de espaço no Globo para apresentar a visão árabe sobre o conflito. Marwa relembra que as participações no Jornal da Cultura da Dra. Arlene Clemesha, professora da USP especialista na questão palestina, eram quase como uma Copa do Mundo em sua casa.
“Uma criança que entendia de um conflito por ter vivido esse conflito. Foi complicado. Foi até difícil pra eu entender a minha identidade. Eu tinha raiva. Muita raiva. Muito ódio. Eu era muito reativa. As pessoas brincavam, “mulher bomba”. Eu ficava muito brava. Eu brigava”, disse.
“Nossa visão era solitária. Totalmente solitária. E aí eu fui crescendo”, disse. “Tive esse contato. E eu lembro até hoje. Quando eu comecei a ver manifestação pró-Dilma na Paulista. E aí tinha a bandeira da Palestina. Gente do céu. Eu preciso entrar nesse mundo”, relatou.
“Os árabes não são uma existência individual. A gente é uma existência coletiva. E que antes de mim veio muita gente. E que eu vivi um negócio que mais pessoas viveram em 82 e mais pessoas vivem hoje na Palestina. Então a nossa experiência é sempre muito parecida”, confirma.
Não foi algo que planejei
Hoje, Marwa, que é formada em Administração pela FEA-USP, não exerce a profissão. Foi por anos uma faria limer, mas hoje trabalho com comunicação e futebol. Surgiu na Twitch, a mesma plataforma de Casimiro Miguel - um amigo - e cobriu a Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2023 in loco com a FIFA.
Mas nem sempre foi assim. Ela relata que sofreu muito durante a infância por diversos motivos. Um deles foi o futebol. “Eu lembro de ter batido num menino na escola, quando o Santos levou 7 a 1 do Corinthians. Eu lembro desse dia também”, disse.
“Eu sempre fui uma mulher no futebol. Sempre. Quando eu era criança era pior, porque eu não podia gostar de futebol na minha escola. Eu fui muito censurada quando eu era pequena”, disse.
A comunicadora enxerga que, hoje, os ataques às comunicadoras mulheres no futebol são menores, graças a outras mulheres que abriram espaço , citando Renata Silveira e Ana Thais Matos, da TV Globo. Na visão dela, é o lado dos bastidores do futebol - os dirigentes, os agentes, as agências e as empresas - que ainda são muito reticentes com a presença feminina no mundo da bola.
E se ela chegou por acaso na comunicação esportiva, isso, ainda assim, parece ter um sentido. “A Marwa que foi proibida de gostar de futebol estaria muito feliz de ver onde o futebol trouxe a gente, porque sempre foi muito genuíno, sempre foi muito orgânico, não foi algo que eu planejei”, disse.
Um mecanismo de união
Os mais de 100 mil seguidores nas redes sociais - incluindo Twitch, Instagram e Twitter - são uma comunidade, formada não só por fãs de futebol, mas também fãs do irreverente humor da jovem de 25 anos. É claro que a exposição vem com alguns esforços.
“Ser mulher muçulmana é uma eterna eu ter que explicar pras pessoas que os muçulmanos são dois bilhões de pessoas, quase dois bilhões de muçulmanos eu tenho que explicar pras pessoas que o Sadio Mané é muçulmano, Karim Benzema é muçulmano”, afirma.
Ela cita a importância de diversos jogadores de futebol, como Salah, do Liverpool, para quebrar a ótica orientalista sobre o mundo árabe e enxerga o esporte para uma construção de pontes entre realidades distantes (mas parecidas).
“O futebol é uma ferramenta para você ter simpatia por pessoas que você não tem esse contato”, afirma. Ela cita o caso do Palestino, clube fundado por descendentes de palestinos no Chile. “É essa união que a Palestina precisa”.
E, para ela, é justamente nas redes sociais - que lhe deram uma comunidade para chamar de sua e um ofício dentro do mundo do futebol - que surgem as oportunidades para que a verdade sobre o conflito de Israel e Palestina.
“Ao descentralizar a mídia, você descentraliza as informações, você permite que as pessoas também tenham contato com outro tipo de informação”, afirma. “Eu prefiro olhar pelo lado bom: tem muita gente vendo a verdade, o que acontece, o que não era noticiado. As pessoas estão tendo a oportunidade hoje em dia de ver o lado do povo que sofre”, afirma.
A inveterada apoiadora da causa palestina relembra: “o jovem árabe é revoltado, ele é rebelde por si só”. Marwa falava do seu pai, mas a tâmara não cai muito longe da tamareira.
Além disso, ela confirma que, dessa vez, o Santos não cai.