Apresentado cinco meses antes do previsto na PEC da Transição — que estipula 31 de agosto como prazo máximo para envio da proposta ao Congresso —, em um timing para sufocar o retorno pífio e sem discurso de Jair Bolsonaro (PL) ao Brasil, o chamado arcabouço fiscal, proposto pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento e Orçamento), teve um consenso: é melhor que o teto de gastos, regra fiscal criada no governo golpista de Michel Temer (MDB), alçado ao poder por uma parcela significativa do PIB e da mídia neoliberal.
Depois desse consenso, em toda análise, seja ela do campo progressista ou do conservador, surge um "mas" — conjunção adversativa usada para transmitir ideia de oposição ou adversidade.
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A grande questão que se coloca na esfera política, especialmente entre aliados e apoiadores do governo Lula, é: essa nova regra fiscal vai permitir o crescimento sustentável da economia para que se garanta a continuidade de um governo progressista, de esquerda, ou abrirá as portas para uma nova aventura fascista neoliberal aos moldes do bolsonarismo?
Tanto quanto Lula, Haddad — que também é potencial candidato ao Planalto — segue a máxima cunhada em 1992 pelo economista e marqueteiro James Carville, que garantiu a vitória do democrata Bill Clinton sobre o republicano George Herbert Walker Bush, o pai, na disputa à Presidência dos EUA: "É a economia, estúpido".
No entanto, o debate sobre a nova regra fiscal, embora feito com atributos técnicos pela equipe coordenada pelo jovem economista Gabriel Galípolo sob o comando de Haddad, vai muito além da economia. E foi construído e negociado em um ambiente de extrema chantagem política, com atores que nunca na história deste país ganharam tanto dinheiro e poder com Bolsonaro no Planalto e Paulo Guedes no Ministério da Economia.
Enquanto Lula busca cumprir sua promessa de colocar a picanha e a cervejinha nas contas semanais das famílias brasileiras, Haddad e Simone Tebet sentaram à mesa para um banquete indigesto com o mercado financeiro, Roberto Campos Neto e o Congresso Nacional para negociar uma base fiscal sólida que coloque "o pobre no Orçamento e o rico no imposto de renda".
Em razão desse cenário que reúne o poder sem precedentes de Arthur Lira (PL-AL) no Congresso Nacional, a chantagem dos banqueiros nas bolsas de valores e a coação política do bolsonarista que comanda o "autônomo" Banco Central sob a égide da mídia golpista neoliberal, a proposta foi considerada positiva por economistas e lideranças progressistas.
No entanto, muitas dúvidas ainda pairam sobre a viabilidade das novas regras fiscais. Especialmente quanto ao crescimento econômico e à (re)inclusão social e econômica de milhões de famílias que voltaram ao mapa da fome com a política genocida de Bolsonaro, que nutre os endinheirados, mas não foi suficiente para formar um arcabouço com votos dos mais pobres para garantir ao fascista um novo mandato.
Por que arcabouço fiscal?
Criado para substituir o simplista teto de gastos, que congelou o aumento dos gastos do governo federal por 20 anos, o arcabouço fiscal é um conjunto de medidas, regras e parâmetros para a condução da política fiscal — controle dos gastos e receitas de um país.
Assim como na construção civil, onde o arcabouço é construído para dar sustentação a um imóvel, a estrutura criada pela equipe de Fernando Haddad busca criar uma base fiscal sólida, que dê transparência aos gastos do governo e sustentação ao desenvolvimento econômico do país. O objetivo é que essa estrutura proteja a economia brasileira das oscilações causadas por crises no sistema financeiro e garanta um ambiente propício para negócios.
Quais são os principais pontos do arcabouço fiscal?
As medidas apresentadas por Fernando Haddad e Simone Tebet nesta quinta-feira (30) são apenas os parâmetros principais de uma Proposta de Lei Complementar (PLC) que será enviada nos primeiros dias de abril ao Congresso Nacional, onde precisa ser aprovada por maioria absoluta de votos — 257 na Câmara dos Deputados e 41 no Senado.
A falta de detalhamento da proposta é o que ainda gera dúvidas entre economistas sobre a viabilidade do arcabouço. Na divulgação, o governo apresentou seis pontos que nortearão o PLC:
- Compromisso de trajetória de superávit primário até 2026, com meta e banda de variação tolerável. Para isso, o governo impôs metas de resultado, com superávit do PIB de 0,5% em 2025 e 1% em 2026, estabilizando a dívida pública da União em no máximo 77,3% do Produto Interno Bruto (PIB) no último ano do mandato de Lula.
- O atual teto de gastos passa a ter banda com crescimento real da despesa primária entre 0,6% e 2,5% a.a., com Fundeb e piso da enfermagem excluídos dos limites. Definido pelo governo como mecanismo anticíclico, a regra cria um piso de 0,6% de aumento das despesas em anos de retração econômica e um teto de 2,5% para investimentos em anos positivos.
- Crescimento anual dentro da faixa de crescimento da despesa limitado a 70% da variação da receita primária dos últimos 12 meses. Uma das medidas mais polêmicas, a regra atrela o aumento do investimento público ao crescimento da arrecadação. Na prática, o governo teria R$ 70 a mais para investir a cada R$ 100 obtidos a mais na arrecadação.
- Resultado primário acima do teto da banda permite a utilização do excedente para investimentos. Essa regra cria uma tolerância para o PIB de 0,25% para mais ou para menos, semelhante ao que ocorre na meta da inflação. Para 2024, por exemplo, a meta do governo é igualar a receita e a despesa – o que significaria um resultado primário de 0% do PIB. Pelo sistema proposto, a meta será considerada "cumprida" se ficar entre um déficit de 0,25% e um superávit de 0,25%.
- Se os esforços do governo de aumento de receitas e redução de despesas resultarem em primário abaixo da banda, obriga redução do crescimento de despesas para 50% do crescimento da receita no exercício seguinte. Caso o resultado primário do governo fique acima do teto da meta, o excedente poderá ser utilizado para investimentos. Se o resultado primário ficar abaixo da banda, as despesas no ano seguinte poderão crescer somente 50% do crescimento da receita no exercício seguinte.
- Investimentos possuem piso, que pode ser maior se houver mais arrecadação. A proposta prevê um piso para investimentos públicos, que ficará próximo dos R$ 75 bilhões programados para 2023 e será corrigido pela inflação a cada ano.
O que dizem Haddad e Simone Tebet?
Com o crescimento atrelado à arrecadação, Haddad fez um forte discurso na apresentação do arcabouço dizendo que as próximas medidas que serão anunciadas pela equipe econômica terão como foco aumentar a arrecadação da União em até R$ 150 bilhões.
O ministro ressaltou que isso será feito sem criação de novos impostos, mas sim "fechando os ralos do que a gente chama de patrimonialismo brasileiro".
"Nós temos muitos setores que estão demasiadamente favorecidos com regras que foram estabelecidas ao longo das décadas e que não foram revistas por nenhum controle de resultado. Muitas caducaram, do ponto de vista de eficiência, precisam ser revogadas. E nós vamos ao longo do ano, já começando na semana seguinte após a apresentação do arcabouço, nós vamos encaminhar ao Parlamento as medidas saneadoras que vão dar consistência para o resultado previsto nesse anúncio. Sim, nós contamos portanto que aqueles setores que estão muito beneficiados ou setores novos que sequer estão regulamentados… Falava-se muito sobre a questão das apostas eletrônicas, mas esse é um item de uma lista extensa de benefícios indevidos, fraudes e todo tipo de coisas que serão revistas", afirmou Haddad, que mirou ainda a regulamentação das chamadas big techs, transnacionais como Google e Meta, de Mark Zuckerberg, que controla redes como Instagram, Facebook e WhatsApp.
"Eu não estou falando de setores da economia popular. Estou falando de grandes setores que estão à margem do sistema e que há uma preocupação mundial com eles. Tivemos nos EUA agora a taxação das big techs, das grandes corporações, no chão. Tudo indo para paraíso fiscal. Ou nós botamos ordem nesse sistema e trazemos para a luz essa realidade e restabelecemos numa confluência com a Câmara, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, ou nós vamos continuar padecendo a cada crise, a cada problema, a cada ciclo, um solavanco na economia brasileira, do qual ela demora a se reerguer", disse.
Já Simone Tebet destacou o trabalho feito pela equipe econômica para criar uma regra "crível", para que o governo possa cumpri-la, e "flexível", o que faz com que os compromissos sociais possam ser cumpridos.
"Essa regra fiscal é crível. Portanto, ela é possível e nós temos condições de cumpri-la de acordo com as metas estabelecidas. E por que isso? Porque ela tem flexibilidade, ela tem bandas e permite a partir daí que nós façamos alguns ajustes para atingir essas metas", disse.
A interpretação do governo e a falta de detalhamento das propostas, no entanto, suscitaram muitas dúvidas tanto entre economistas do campo progressista quanto dos porta-vozes do sistema financeiro.
O "mas..." dos economistas progressistas
Entre economistas do campo progressista, o arcabouço fiscal apresentado pelo governo Lula "saiu melhor do que se temia", como definiu Paulo Nogueira Batista Jr, ex-vice-presidente do Banco dos Brics, mas "rebaixou os nossos sonhos e perspectivas", segundo a análise de David Deccache, assessor econômico do PSOL na Câmara Federal.
Em sequência de tuítes, Batista Jr. ressaltou alguns pontos que coincidem com o que ele e outros economistas progressistas defendiam, como a definição de uma banda, que dá flexibilidade em relação ao resultado primário das contas públicas, e não uma meta, mas apontou ressalvas.
"A banda talvez seja estreita demais, insuficiente para acomodar choques e imprevistos. A meta de zerar o déficit em 2024 é apropriada? Não se corre o risco de travar a economia, já sobrecarregada pela política monetária escorchante? Por que tantas restrições do lado do gasto? O objetivo de aumentar o resultado primário ao longo do mandato de Lula, com superávits gradualmente crescentes, é factível — se a economia crescer. Mas ela consegue crescer sem apoio da política fiscal? O novo arcabouço permite esse apoio?", tuitou o economista com indagações ao governo.
Já Deccache, em análise no Fórum Café, ressalta que a banda que cria um teto de aumento de 2,5% nos investimentos públicos quando o cenário econômico é favorável pode fazer com que o Brasil fique estagnado por anos em um voo de galinha.
"Estou esperando a regra sair para ter uma definição mais clara. Mas minha conclusão é a seguinte: essa regra aponta para um crescimento da economia brasileira baixo e estável. Você vai ter um papel reduzido no Estado, mas a economia terá uma estabilidade na baixa", diz ele, destacando que a regra dá ainda "estabilidade política".
"Ela tende a ter fôlego mais longo e trará uma estabilidade econômica e política na baixa. É um ganho em relação ao teto, mas temos esse problema", aponta o economista, que divulgou um gráfico que mostra crescimento das despesas bem acima do previsto nos governos FHC, nos dois mandatos de Lula e na gestão Dilma Rousseff.
Eduardo Costa Pinto, professor do Instituto de Economia da UFRJ, ressalta ainda que a banda para aumento das despesas, com teto de 2,5%, deve aproximar o crescimento econômico do governo Lula ao registrado durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), que furou o teto principalmente para buscar ganhos eleitorais durante a pandemia.
"Se você pega a expectativa do governo de 1,6% [de crescimento da economia, segundo o Ministério da Fazenda, para 2023] a expectativa é que você tenha um crescimento das receitas em torno de 3,2%, 3,4%. Você vai ter os 2,5%, que é o teto, e uma sobra para investimento. É muito distante do governo [anterior] do Lula e próxima do Bolsonaro. Se você olha a média dos quatro anos do governo Bolsonaro em termos reais, dá quase 3% o aumento das despesas em termos reais em razão da pandemia. E o governo Bolsonaro cresceu em torno de 2%. Essa regra não gera nenhum crescimento de expansão. E sim um crescimento estável e baixo", disse Eduardo.
O economista ainda aponta a dissonância entre a expectativa de Haddad de aumentar a arrecadação e a votação da base governista no Congresso Nacional, como a prorrogação da isenção do PIS/Cofins para o fornecimento de combustíveis às companhias aéreas, e a diferença entre o cenário encontrado por Lula em 2003 e 2023.
"Eu desconfio que parte do mercado não vai aprovar essa regra [flexibilização]", afirma. "O grosso dos caras que operaram e que ganharam como nunca nos últimos anos não vai achar o marco adequado. E é esse o ponto fundamental. Essa burguesia ela diz: 'você não cedeu nada. Não é ceder. Eu não vou mudar minha posição. Então ou você entrega o que era antes ou eu não vou querer nada'. Essa que é a dificuldade de entender a mudança de tempo histórico entre 2003 e 2023. Ali [2003] houve possibilidade de conciliação. Agora qualquer posição do Lula piora o que a burguesia tinha em relação a Bolsonaro", emenda o economista.
O "mas..." do mercado
Do alto do Olimpo do mercado financeiro, o bolsonarista Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, repetiu o que disse no relatório do Copom de que há boa vontade do Ministério da Fazenda e que a proposta parece "bastante razoável".
"Eu destaquei que existe uma boa vontade muito grande da Fazenda em fazer um arcabouço robusto. Quando olhamos o arcabouço, sem a calibragem dos parâmetros, parecia bastante razoável, mas faz algum tempo e não tivemos atualização. Quero reconhecer o esforço feito pelo Ministério da Fazenda em um projeto que é duro, num governo que tem bastantes divisões", afirmou, levando novamente a discussão para a esfera política ao alfinetar o governo.
Em uma desfaçatez que lembra seu ex-chefe, no entanto, o presidente do BC voltou a chantagear o governo, ao projetar uma taxa Selic, que trava os investimentos produtivos, na estratosfera.
“Se a gente quisesse atingir a meta em 2023, a última informação que tive é que a taxa teria que ser 26,5%. É óbvio que a gente entende que isso é impossível”, disse em tom de ameaça.
Visto com bons olhos pela Febraban e elogiado até mesmo pelo presidente do Bradesco, que vê "robustez" na proposta, o arcabouço fiscal proposto pelo governo Lula também suscita muitas dúvidas entre os endinheirados.
Coube ao economista Fabio Giambiagi, da FGV, o papel de ser porta-voz do sistema financeiro, atacando especialmente a regra que relaciona o aumento das despesas ao aumento da arrecadação do governo.
Em longo artigo, recheado de dados, no site Brazil Journal (assim mesmo, em inglês), que representa o sistema financeiro, Giambiagi prevê uma "piora fiscal — e substancial" — em 2023 e ataca a proposta do governo.
"Olhando pra frente, esse analista vê um lucro menor da Petrobras gerando menos impostos, uma Selic menor reduzindo a arrecadação do IR na fonte sobre aplicações financeiras, menos dividendos pagos pelas estatais, menos concessões e menos royalties. É aqui que a porca torce o rabo. Se i) o governo pretende melhorar razoavelmente o resultado primário; ii) o gasto, clara e assumidamente, vai aumentar, a única explicação possível para fechar a conta é ter um aumento significativo da receita", brada ele, temendo uma sequência de medidas "saneadoras" previamente anunciadas por Haddad aos que são beneficiados há décadas com o regime tributário do país.
"A ‘pergunta do bilhão’ é: Como? Quanto? Onde? Do IR? Do IPI? Da Cofins?", brada Giambiagi, levantando as mesmas dúvidas que permeiam, por outro ponto de vista, os anseios do campo progressista.
Tempo a favor de Lula ou Bolsonaro?
Decano dos economistas progressistas, Luiz Gonzaga Belluzzo acredita que a avaliação sobre o arcabouço fiscal ainda é preliminar, mas o que foi anunciado pelo governo “é uma tentativa de escapar à rigidez do teto de gastos e, ao mesmo tempo, oferecer aos mercados um arcabouço razoavelmente seguro em matéria de disciplina e ordenação da relação entre gasto e receita”.
Ele ressalta, porém, que "algumas coisas precisam ser explicitadas de maneira mais precisa”.
“No plano tem uma proposição de alcançar o superávit primário ao longo do tempo, o que é correto, pois o movimento da economia transcorre no tempo, e esse movimento depende das decisões que você toma ao longo do tempo”, diz o economista emérito da Unicamp. Resta saber, no entanto, se o tempo estará a favor de Lula ou de Bolsonaro.