Antes de assumir o Ministério do Planejamento no governo João Goulart em 1962, Celso Furtado cunhou a máxima que explicaria desde então a estrutura econômica que mantém o fosso da desigualdade no País. Em sua obra "Formação Econômica do Brasil", escrita em 1958, o economista paraibano discorria sobre a "privatização dos lucros e socialização dos prejuízos" para explicar os ganhos recorrentes da então elite agrária-exportadora do Brasil.
Passados exatos 65 anos, o conceito de Celso Furtado pode ser usado para explicar a crise cíclica no sistema financeiro global, como a que ocorre nesse momento, em que o Credit Suisse obteve um empréstimo de 53,75 bilhões de dólares do Banco Central da Suíça após provocar pânico no mercado financeiro global, no rastro da insolvência do Silicon Valley Bank e Signature Bank, nos EUA.
Te podría interesar
A bancarrota no sistema financeiro acontece exatos 15 anos após a crise do subprime provocada pela quebra do Lehamn Brothers e dá mostras que se torna cíclica por meio da lógica neoliberal de acumulação de lucros a quaisquer custos.
Para se ter uma ideia, o Saudi National Bank (SNB), banco controlado pela ditadura da Arábia Saudita e principal acionista do Credit Suisse, teve ganhos exorbitantes entre este dia 15 de março, quando os sauditas negaram aporte enquanto a instituição europeia derretia 30% na bolsa de Zurique, e o dia anterior, quando as mesmas ações tiveram ganho de cerca de 40% depois do anúncio de que o rombo seria sanado com o repasse bilionário de recursos públicos, que representa mais de 6% do PIB suíço.
Para o ecomonista Marcio Pochmann, a crise atual pode ser explicada por dois aspectos: aos empréstimos demasiados e sem garantia desde 2020 para frear um possível abismo econômico, quando teve início a pandemia do coronavírus, mas sobretudo à falta de regulamentação e transparência das instituições financeiras. Segundo Pochmann, essas instituições privatizam lucros e socializam as perdas sob o manto do discurso neoliberal – propagado pelo "deus" mercado em conluio com as agências de classificação de risco – ecoado pelos grandes grupos de mídia como via única de desenvolvimento aos quatro cantos do planeta.
"O capitalismo ocidental está sendo surpreendido desde o dia 10 de março com a situação desfavorável de seu sistema bancário. A começar pela quebra de dois bancos nos EUA, até agora, e os problemas graves decorrentes da crise do Credit Suisse. Tudo isso resulta justamente do que foi sendo estabelecido a partir da pandemia em 2020, cujo papel dos bancos centrais foi o de ampliar a política monetária, isto é, elevando o crédito com taxas de juros cadentes, permitindo que uma série de atividades fosse financiada sem que necessariamente tivesse as garantias exigidas. Desde que os bancos centrais, especialmente o dos EUA, passaram a elevar as taxas de juros, em 2022, os bancos que haviam emprestado demasiado e sem garantia passaram a ter problemas de recebimento de seus recursos, a tal ponto de haver um descrédito em relação à recuperação das dívidas, Isso foi sendo sentido do ponto de vista das bolsas de valores, das ações especialmente dos bancos dos EUA, gerando uma crise de confiança entre os investidores. Especialmente porque uma parte importante desses investidores foi deslocando esses recursos que estavam nos bancos privados para títulos públicos", explicou Pochmann à Fórum.
No entanto, o economista ressaltou o caráter cíclico da crise lembrando o que foi feito – ou melhor, o que não foi feito – após a crise do subprime e a quebra do Lehmann Brothers em 2008.
"Esta situação é grave e decorre do que aconteceu com a pandemia, de 2020 para cá, mas também está relacionada à solução que foi estabelecida 15 anos atrás naquela grave crise financeira do Lehmann Brothers nos EUA, em que também o Banco Central usou recursos públicos, mas sem exigir o enquadramento, o monitoramento, a regulação bancária, que segue submetida à visão neoliberal da ausência de regulação e que, portanto, coloca os bancos numa situação, em geral, de pouca transparência e de, ao mesmo tempo, fragilidade em casos mais difíceis, como o que estamos assistindo agora", emendou.
Para ele, há aspectos fundamentais que ligam o que ocorreu em 2008 e o que acontece em março de 2023.
"Em 2008, a crise do subprime resultou justamente do avanço do crédito para segmentos da sociedade incapazes de garantir o pagamento dos empréstimos recebidos. Nós temos, no caso do Silicon Valey Bank, também um problema sério de recebimento de empréstimos concedidos a startups, pequenas empresas e segmentos que tomaram crédito sem o cuidado do risco imposto. Então, tem alguma semelhança. Também tem uma semelhança em relação ao fato de que lá em 2008 parte da transparência dos bancos resultava da ausência de monitoramento e da regulação bancária. Situações como essa são perceptíveis também no que está acontecendo neste mês de março."
Pochamnn ainda destacou o papel das agências de auditoria e de classificação de risco, que vivem uma crise de credibilidade, mas seguem escondendo as bolhas financeiras até o momento da explosão.
Foi o caso da PricewaterhouseCoopers (PWC) – a mesma que atuou no Brasil no caso das lojas Americanas e na privatização da Eletrobrás, servindo a Jorge Paulo Lemann e sua trupe –, que, em balanço de 2022, concluiu que “o Credit Suisse não projetou e manteve um processo de avaliação de risco eficaz para identificar e analisar o risco de distorções materiais em suas demonstrações financeiras dentro deste sistema”, mas passou pano ao ressaltar que essa ineficácia no controle interno do banco não representa um desvio da condição financeira do grupo nos últimos anos.
"Embora bancos sejam auditados por empresas reconhecidas no mundo ocidental, elas não detectaram ou informaram possíveis problemas que agora estão sendo revelados no sistema bancário. Interessante notar que agências de avaliação de risco perderam a credibilidade e a confiança 15 anos atrás, quando se demonstraram incapazes de identificar os problemas que os bancos norte-americanos apresentavam naquele momento. E que gerou, inclusive, uma grave crise financeira global. Agora, o que estamos vendo é, de certa maneira, uma perda de confiança das empresas de auditoria que, até então, não faziam nenhuma menção a quaisquer problemas que os bancos dos EUA estavam registrando. Tudo isso faz com que, de certa maneira, o Banco Central tenha que atuar buscando garantir o recebimento dos clientes de bancos que estão quebrados, ajudar bancos que estão fragilizados, evitando um efeito dominó que pode atingir todo sistema econômico", disse Pochamnn.
O economista ressaltou, então, que a gritaria propagada pelos agentes do neoliberalismo pregando a redução do Estado, principalmente em relação a projetos de inclusão econômica e social da população mais vulnerável, não encontra eco quando a ajuda diz respeito aos bancos.
"Em momentos graves como o que estamos vivendo atualmente, porta-vozes do neoliberalismo não se apresentam defendendo a redução do Estado. Pelo contrário, assumem uma posição de defesa que o Estado intervenha nos bancos privados, na falência de setores capitalistas. É importante que o BC atue em momentos como esses, através do Estado com recursos públicos, mas também é importante que se diga que os mesmos direitos que os bancos têm de receber recurso numa situação de falência, como se observa agora, também seja equivalente à situação da população em relação à educação, à saúde, quando geralmente a posição dos porta-vozes neoliberais é contrária à defesa da atuação do Estado."
Segundo o economista, o resultado dos bilhões de dólares destinados para conter a bancarrota de agentes do sistema financeiro é o aumento das mazelas sociais.
"De toda maneira, essa situação problemática do sistema financeiro ocidental termina tornando mais difícil a possibilidade do crescimento econômico, da expansão das atividades produtivas, porque nesse quadro há, de certa maneira, uma volta dos recursos para ativos líquidos onde há mais garantia do ponto de vista do retorno e da própria solvência no recebimento das aplicações. Então, isso pode contribuir para que 2023 seja ainda mais complicado não só pelo curso da guerra e sanções econômicas, mas também pelo agravante da crise financeira."
Para Pochmann, a ganância neoliberal do setor financeiro – explicitada na privatização dos lucros por Celso Furtado – é o motor que cria crises com ciclos cada vez mais curtos e que resulta no aprofundamento do fosso social no Brasil e no mundo.
"Mais uma vez é a demonstração da ausência de regras, de monitoramento dos bancos que seguem operando fundamentalmente atraídos pela possibilidade de maior dividendo e retorno no curto prazo."