Somente no primeiro trimestre deste ano, mais de 5 mil entregadores do iFood foram vítimas de algum tipo de violência, segundo a Central de Apoio Psicológico e Jurídico da plataforma.
A violência contra entregadores de aplicativo não é uma realidade atual, mas veio ganhando maior repercussão com os últimos casos que foram repercutidos na mídia, como o do jovem Nilton Ramon, de 24 anos, que foi baleado, em março, por um policial militar após se recusar a subir ao apartamento para entregar o pedido.
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A razão para a violência sofrida por Nilton também não é isolada. Segundo os dados da central, 15% dos casos de agressões a entregadores têm como motivo a recusa do trabalhador em subir na residência do cliente.
Para atuar de forma mais efetiva no combate à violência contra seus entregadores, o iFood criou a central em 2023, em parceria com a organização Black Sister in Law. Desde então, 167 pessoas já passaram pela central; 156 tiveram assistência jurídica e 148 receberam assistência psicológica, ambas gratuitas.
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O coletivo Black Sister in Law é formado por mais de 3 mil advogadas negras, que são conectadas a processos jurídicos não só no país como também no exterior. Em junho de 2023, a organização enviou uma proposta ao iFood para a criação da central para atuar na defesa dos entregadores vítimas de violência. A fundadora, a advogada Dione Assis, contou à Fórum o papel que o projeto desempenha.
"Quando eu estruturei o projeto, confesso que fiquei um pouco reticente da possibilidade de o iFood não aceitar, porque, afinal, a proposta seria para que a plataforma financiasse advogadas que passariam a defender entregadores e, considerando que na maioria dos casos são os clientes os principais agressores, o iFood estaria patrocinando advogadas para processarem os seus próprios clientes", diz.
Inicialmente, a central atendia apenas casos de discrminação, que corresponderam a 22% dos casos de violência registrados desde junho de 2023. Ainda assim, a fundadora explica que, excepcionalmente, também atendiam casos de outra natureza, para que a violência não ficasse impune. Porém, em novembro do ano passado, o iFood estendeu a cobertura da assistência jurídica e psicológica a todos os tipos de violência.
A denúncia na central de apoio acontece por meio do entregador, em que ele escreve os fatos através do aplicativo do iFood. Não é necessário saber a natureza do crime cometido pelo agressor. A plataforma, então, recebe a denúncia e encaminha para a central, que conecta, em pelo menos 24h, uma advogada ao caso e oferece assistência jurídica e psicológica.
Na segunda fase, a advogada encontra o entregador de forma presencial e dá início ao processo. Dione afirma que não são raros os casos em que há deturpação das informações no registro de ocorrência feito diretamente pelo entregador, então é ainda mais essencial a atuação de um especialista.
Combate ao racismo
Dione ressalta que o fato de ser uma associação de advogadas negras atendendo juridicamente os entregadores que são, em sua maioria, negros, reforça o combate ao racismo intrínseco nos casos de violência. Segundo dados, 60% dos entregadores e motorista de aplicativo são negros. Dione fala que, muitas vezes, existe uma tendência de o cliente entender que o empregador está exercendo uma atividade de subalternidade, e essa visão vem carregada de racismo.
"O fato da gente ter profissionais que diariamente estudam esse tema traz um peso maior na defesa porque a gente está diante de profissionais que vão saber construir melhor a tese", afirma. "Tem vários exemplos de situações no mundo jurídico em que se não fosse alguém que tivesse passado por aquela experiência, o processo nunca seria julgado daquela forma", acrescenta a advogada.
"Não é que os magistrados brancos não possam julgar casos de racismo, mas como eles não estudaram muito o tema, eles tendem a receber esse tipo de denúncia e e concluir que não houve crime de racismo", explica. "É como se a gente tivesse os crimes de violência contra mulher e, quando um homem julga, ele entende que não houve violência contra a mulher porque ele nunca vivenciou aquela situação".
"Certamente é um diferencial a atuação das advogadas negras nesses casos em que a violência contra o entregador está relacionada a casos de injúria racial e racismo", finaliza.
Coibir a violência
No início do projeto, Dione conta que um treinamento foi estruturado para conscientizar os entregadores sobre o tipo de violência que eles estavam sofrendo e como ela deveria ser denunciada. Porém, a advogada afirma que não bastava falar somente com os entregadores, mas também com os estabelecimentos comerciais e, principalmente, com os clientes.
Para isso, a organização criou um conteúdo, que ainda será divulgado pelo iFood, para mostrar aos clientes que determinada situação é um caso discriminatório e que, a partir de agora, a plataforma conta com uma central de apoio jurídico para punir eventuais clientes que cometam essas agressões.
"Tenha consciência de que se você praticar essa conduta, você passará a ser punido", diz Dione.
"A Black Sister, então, vem atuando nesses casos e atuando muito bem, mostrando para esses entregadores que eles não podem e não precisam mais ficar reticentes no trabalho, porque muitas vezes eles passam por essa situação e querem desistir de trabalhar e isso coloca a economia familiar em crise", alerta a advogada.
O entregador não deve subir
De acordo com as políticas do iFood, a obrigação do entregador é deixar o pedido no primeiro ponto de contato, seja o portão da casa ou a portaria do prédio. Ou seja, o entregador não é obrigado a subir na residência do cliente para entregar o pedido. A empresa também reforça que não tolera qualquer tipo de ofensas, agressões, manifestações de preconceito ou assédio contra os entregadores.