CORTE INTERAMERICANA DE DH

Corte Internacional vai apurar assassinatos de camponeses na Paraíba ocorridos décadas atrás

O Brasil vai ao banco dos réus por violência oriunda de disputas de terras do passado em meio a uma nova escalada de assassinatos na mesma região

Almir Muniz e Manoel Luiz eram trabalhadores rurais e integravam o MST.Créditos: Gustavo Marinho/MST
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Manoel Luiz da Silva e Almir Muniz da Silva são os nomes dos camponeses e militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) assassinados décadas atrás na Paraíba cujos casos farão o Brasil sentar no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos a partir da próxima quinta-feira (8). Os julgamentos ocorrem em San José da Costa Rica, onde a corte se reúne para apurar as denúncias que, segundo observadores internacionais, revelam a violência no campo brasileiro decorrente de disputas pelo acesso à terra.

Manoel Luiz da Silva foi morto há 27 anos, a tiros, em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu (PB). O ataque ocorreu quando ele passava por uma estrada rural rumo a um assentamento da reforma agrária. Seguranças particulares de Alcides Vieira de Azevedo, o então proprietário da Fazenda Engenho Itaipu, foram os suspeitos do crime. Aos 40 anos, Manoel deixou a esposa Edileuza Adelino de Lima, grávida de dois meses, e o filho Manoel Adelino, de apenas 4 anos.

O caso teve pouca atenção da Justiça e uma série de falhas e demoras no cumprimento de etapas atrapalharam as investigações.

Um dia depois, a mesma Corte julga a denúncia por omissão e falta de responsabilização do Estado no caso do desaparecimento forçado, em 2002, de Almir Muniz da Silva, trabalhador rural e defensor dos direitos humanos. Ele desapareceu no município de Itabaiana (PB).

Por volta de 5h de 26 de junho de 2002, Almir e familiares rebocaram, no trator da associação de trabalhadores rurais, o carro de seu cunhado. O veículo enguiçou na Fazenda Mendonça e foi levado até a uma oficina no município de Itabaiana. Após deixar seu cunhado na oficina, dirigiu-se com seu primo a uma feira, onde fez compras e retornou para casa. Almir foi visto pela última vez, por um de seus familiares, quando entrava pela estrada do canavial que leva à Fazenda Tanques. Um inquérito policial só foi instaurado em João Pessoa por conta da pressão dos familiares de Almir, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra.

O trator que ele conduzia foi encontrado na Fazendo Olho D'Água, no município de Itambé, em Pernambuco, divisa com a Paraíba. De acordo com as denúncias, a polícia sequer fez buscas por Almir ou diligências no local do desaparecimento e nas fazendas citadas.

“Sete anos depois, as investigações para apurar o seu desaparecimento foram arquivadas pelas autoridades do Estado, havendo forte indício de que Almir foi assassinado por um policial civil”, diz a denúncia das entidades de direitos humanos.

Antes de ser morto, Almir já denunciava que sofria ameaças. Chegou a alertar a Comissão Parlamentar de Investigação da Assembleia Legislativa da Paraíba sobre as ameaças e a formação de milícias à serviço dos latifundiários locais, auxiliadas por agentes do Estado. Foi ignorado.

Ambos os casos ocorreram no estado da Paraíba e foram denunciados pela Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba e a Dignitatis, além da Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Almir Muniz, no caso do defensor de direitos humanos. Mas o mais curioso é que enquanto esses assassinatos de décadas atrás são julgados na Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma nova escalada de violência assola a mesma região desde o último mês de novembro.

Ataques a acampamentos do MST na Paraíba e em Pernambuco

Com a reforma agrária parada, acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) têm vivido uma aterrorizante escalada de ataques violentos na Paraíba e em Pernambuco. Em apenas uma semana foram três assassinatos de camponeses no último mês de novembro. Algumas comunidades têm conseguido se organizar para realizar vigílias e outras atividade de defesa, enquanto outras simplesmente passam por processo de esvaziamento pelo medo.

Segundo matéria publicada pelo site Repórter Brasil no acampamento São Francisco, em Vitória de Santo Antão (PE), nenhum trabalhador sem terra consegue dormir a noite inteira desde 5 de novembro, quando Josimar da Silva Pereira foi assassinado. Ele estava a caminho da plantação de arroz comunitário, aquele consumido pelos próprios trabalhadores, quando foi morto a tiros.

O São Francisco é um dos acampamentos mais antigos do MST em Pernambuco e está há 29 anos aguardando que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) termine de desapropriar o território para a reforma agrária. E ainda que tudo esteja parado, lideranças do acampamento acreditam que a violência seja derivada da disputa pela terra. Também relatam ameaças e esperam a proteção do governo estadual por meio do Programa Estadual de Proteção a Defensores de Direitos Humanos.

“Acho que ninguém dorme aqui. Se aconteceu com o Josimar, que era uma pessoa que estava na luta com a gente, mas não era diretamente ligado à coordenação, pode acontecer com qualquer um de nós”, diz Denise Alves dos Santos, uma das coordenadoras do acampamento, ao site supracitado.

Os acampados desde então se revezam em vigílias durante a madrugada pela proteger a pequena comunidade. Os turnos começam as dez horas da noite e duram cerca de duas horas. O revezamento funciona até o sol nascer. Com o apoio do governo estadual, também foram instaladas câmeras de segurança na localidade. Mas isso não impede que drones sejam flagrados sobrevoando o local - o que indica o monitoramento do território - e nem o aparecimento de pessoas estranhas perguntando sobre lideranças.

O clima é tão tenso que as crianças da comunidade foram enviadas para as cidades da região para viver com parentes até a poeira baixar.

Em torno da comunidade está uma enorme plantação de cana da Usina JB, uma das últimas empresas sucroalcoleiras da região. Ela tenta, através da Justiça, retirar os sem terra dali e nega que suas terras sejam improdutivas, contrariando um parecer do Incra e a denúncia dos sem terra. A usina também alega que a ocupação dos sem terra tem cerca de um ano, quando, na verdade, já teria décadas. À imprensa, a empresa ainda diz que os sem terra já teriam tentado incendiar um ônibus da JB, colocando em risco as vidas do motorista e de 4 funcionários que estavam a bordo. Também diz que está interessada na resolução do conflito.

A pequena cidade de Goiana, na divisa entre Pernambuco e Paraíba, é o lar de outros 12 acampamentos do MST. Foi ali que o carro de uma liderança foi alvo de tiros e trabalhadores sem terra acusam proprietários locais de os terem agredido por meio de capangas.

No acampamento Rosa, o MST constrói casas ao redor da sede como meio de proteção, e as atividades de agricultura são acompanhadas por seguranças voluntários. Além disso, assim como acampamento Santo Antônio, vigílias também são organizadas durante a madrugada. Se um carro desconhecido entra no território, um gongo é soado, para alertar os agricultores.

Em Princesa Isabel, de volta ao sertão paraibano e em paisagem de Caatinga, duas lideranças do Quilombo do Livramento foram assassinadas em 11 de novembro. Aldecy Viturino Barros e Ana Paula Costa Silva arrumavam o telhado de casa quando foram alvos de tiros de dois homens em uma moto. Barros era a principal liderança da comunidade, que já leva 14 anos ocupando uma área da União, repassada pelo Instituto Federal da Paraíba. A Polícia Civil investiga o caso.

Depois da morte de Barros, a maioria das 22 famílias que viviam ali começaram a fugir para as cidades da região com medo. De acordo com relatos, apenas 8 famílias estariam resistindo no local.

A Comissão Pastoral da Terra aponta que foram registrados 973 casos de conflitos no campo no primeiro semestre de 2023,mostrando 8% de aumento em relação ao mesmo período de 2022. 791 desses casos envolveu disputas pela propriedade ou posse de terras.

“Vivemos seis anos de governos em que não foi pautada a reforma agrária. Ao mesmo tempo, a violência continuou, como apontam os números”, explicou Tânia Maria de Sousa, que está há 30 anos na CPT, ao Repórter Brasil.