O destino de crianças e adolescentes nos próximos quatro anos estará em disputa no domingo que vem (1), data em que ocorrerá a eleição para o Conselho Tutelar em todas as cidades e regiões administrativas do Brasil. Com o objetivo de conter o avanço do conservadorismo no órgão, organizações de esquerda lançam nomes progressistas como candidatos à representação da sociedade civil no atendimento aos jovens com direitos violados ou ameaçados.
Escolhidos por voto local, os mais de 30 mil conselheiros tutelares terão mandato entre 2024 e 2028. Cada município ou região administrativa possui o mínimo de um Conselho Tutelar (CT) na administração pública local, com cinco conselheiros eleitos pela população. As maiores cidades têm seus CTs organizados em regiões.
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O histórico avanço do conservadorismo
Desde a década de 1980, membros das igrejas neopentecostais incorporam-se aos órgãos do Estado com a finalidade de priorizar a defesa de seus interesses. Como órgão ligado à criança e ao adolescente, o Conselho Tutelar é um espaço de disputa ideológica por projetos políticos nos âmbitos da juventude e dos direitos humanos.
O site Como Falar Sobre, que se propõe a mobilizar progressistas a participarem das eleições dos CTs, explica que a estratégia conservadora tem "o objetivo de usar os Conselhos Tutelares para impor à sociedade uma visão única e conservadora de família, intervindo e cerceando vivências familiares que escapem do modelo tradicional".
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Os grupos conservadores têm se articulado para ocupar os Conselhos Tutelares em todo o Brasil. Em 2019, uma polarização entre conservadores e progressistas dominou as narrativas das eleições de conselheiros. Grupos religiosos, sobretudo da Igreja Evangélica, passaram a protagonizar a concorrência aos cargos no conselho. O pleito foi inflado pela onda conservadora que elegeu Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018.
De 2019 a 2023, período referente ao mandato atual, 53% dos conselheiros tutelares eleitos pelos votos dos munícipes de São Paulo são ligados a igrejas neopentecostais, de acordo com o levantamento feito pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. No Rio de Janeiro, o cenário é ainda mais grave: 65% têm vínculo com essas entidades.
Estes grupos comumente aparecem atrelados à denúncias de racismo, LGBTfobia, ou intolerância religiosa, como o episódio no qual o Conselho Tutelar retirou uma adolescente da guarda dos pais por participar de um ritual de iniciação do candomblé, religião de matriz africana. A atividade foi denunciada pelos familiares da jovem como "maus tratos e abuso sexual".
Outro caso, desta vez de assédio infantil, foi aproveitado por lideranças religiosas em agosto de 2020 para defesa de suas convicções. A então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro, Damares Alves, utilizou dados pessoais vazados por conselheiros de uma menina de 10 anos, que havia engravidado após ser vítima de estupro. Ela levou uma horda de bolsonaristas à porta do hospital para fazer uma algazarra antiaborto.
Mesmo com o aborto autorizado pela Justiça, Damares se reuniu com a Polícia Civil, a Secretaria de Assistência Social da cidade e conselheiros tutelares para impedir o procedimento na criança.
As campanhas progressistas
Organizações têm se articulado para concentrar esforços em candidaturas comprometidas com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com princípios básicos dos direitos humanos. A ala progressista tem apostado na estratégia de unidade na mobilização dos movimentos sociais para combater a extrema direita e o conservadorismo.
A iniciativa A Eleição do Ano é uma coalizão de 14 entidades de direitos humanos com o objetivo de promover o processo de escolha para Conselhos Tutelares no território brasileiro. O projeto das candidaturas da iniciativa se pauta no respeito aos direitos: da população LGBT+, de liberdade religiosa, dos direitos sexuais e reprodutivos, e das populações indígenas e comunidades tradicionais.
Outras medidas incluem:
- Atuação em parceria permanente com serviços de proteção dos direitos da criança e do adolescente;
- Participação popular na construção de políticas públicas para crianças e adolescentes;
- Prioridade ao acionamento da rede de proteção e à manutenção dos vínculos familiares;
- Garantia de escuta especializada para jovens em situação de violência;
- Planejamento de acordo com o Plano Decenal de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes;
- Colaboração com o Poder Executivo local na elaboração do orçamento voltado às crianças e adolescentes.
De acordo com Camila Bahia, mobilizadora da organização não governamental (ONG) NOSSAS, criadora do site A Eleição do Ano, "a plataforma foi criada com o objetivo de aumentar a participação popular no processo de escolha dos Conselhos Tutelares dando visibilidade para essas candidaturas alinhadas ao ECA".
"O Conselho Tutelar tem a função de agir diante de qualquer omissão do Estado ou da família. Então, é um cargo chave para preencher qualquer lacuna de ausência de direitos para as crianças e adolescentes," diz a ONG
Por sua vez, Clayton Belchior, da UNEafro, aponta o papel da participação de conselheiros tutelares de organizações antirracistas: "A UNEafro Brasil se debruça sobre a temática da defesa de direitos de crianças e adolescentes defendendo uma abordagem que garanta a equidade racial no sistema de garantia de direitos e em especial nos Conselhos Tutelares, em contraponto ao avanço considerável de fundamentalistas e ultraconservadores nestes espaços de atendimento e controle social", explica.
A UNEafro se define como "um coletivo de militantes da causa negra, da luta antirracista, da causa das mulheres, da diversidade sexual e do combate a todos os tipos de discriminação e preconceito; da causa da Educação Popular e Libertária, da disseminação do protagonismo comunitário e da luta contra a exploração econômica e a dominação política".
Belchior expõe a falta de direitos para as infâncias e Adolescências indígenas, LGBTQIAPN+, quilombolas, negras e pobres – aqueles com maiores taxa de óbito, menos acesso e permanência no sistema educacional, menos acesso à saúde, ao saneamento e à moradia digna.
"Nos resta o esforço para reunir, fortalecer e votar em candidaturas antirracistas para os Conselhos Tutelares, focando na construção de uma grande rede nacional antirracista , que defenda o ECA, a liberdade religiosa e a democracia nos espaços de relação e encaminhamentos das infâncias e adolescências negras, buscando alcançar a equidade racial," diz Belchior.
Outras organizações, como a Em Defesa do ECA, estão voltadas a combater a criminalização da pobreza, o racismo e outras formas de opressão que afetam a vida das infâncias, adolescências e famílias periféricas.
"Ter pessoas conservadoras na defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes, nos faz ter um retrocesso gigantesco, tendo em vista que são pessoas assistencialistas, sem empatia e com uma visão muito distorcida de família, sociedade e Estado, que são os atores que devem proteger e garantir esses direitos", conta Keila Mendes em entrevista à Revista Fórum. Ela é candidata ao Conselho Tutelar no bairro do Butantã, em São Paulo.
Keila iniciou sua atuação na promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescentes aos 15 anos de idade. Ela integra o Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Butantã (FoCA-BT) desde 2003. Além de educadora social, é trabalhadora do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Segundo ela, a má percepção da sociedade sobre o conselho deu brecha para conservadores serem eleitos e ganharem força. No entanto, Keila acredita que "um movimento progressista vem crescendo e ganhando força nesta eleição, tornando possível que o Conselho consiga mudar a visão distorcida que hoje existe".
"Essa visão afasta a proteção às crianças e adolescentes, os deixando a margem, tornando a dignidade e o direito à vida inalcançáveis, uma vez que esses mesmos conservadores não executam as medidas de proteção, não encaminham as demandas sem que sua fé interfira no encaminhamento e tampouco fazem um acompanhamento adequado para que aquela violação não volte a acontecer, e assim proteger quem está em risco e vulnerabilidade social."
Como candidata, ela propõe um conselho acolhedor, com escuta ativa e com participação efetiva junto à rede de proteção que existe hoje no território, como o FoCA-BT e o Fórum de trabalhadores e usuários de Assistência Social do Butantã (FAS-BT), fóruns importantíssimos na efetivação da garantia dos direitos.
Os programas #AgendaCidadeUNICEF e Apoiar e Proteger, com apoio da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do Município de São Paulo, disponibilizam suas candidaturas para outras grandes cidades, como Rio de Janeiro, Salvador, Manaus e São Luís.