SEGURANÇA PÚBLICA

Lei Orgânica das PMs é suavizada com 28 vetos e sancionada por Lula

Principal preocupação é com hipermilitarização das forças e sua inserção na administração pública; Também há receio de que Congresso derrube os poucos vetos que amenizam efeitos negativos

Polícia Militar do Estado de São Paulo.Créditos: Reprodução/Governo de SP
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou na última quarta-feira (13) a Lei Orgânica das Polícias e Bombeiros Militares (LOPM) com 28 vetos que buscam suavizar os efeitos do texto original. Ao contrário do que dizem seus defensores, o projeto é apontado por críticos como uma espécie de continuação do decreto-lei 667/1969 que daria poderes de “polícia política” para as Polícias Militares. A principal preocupação é com a hipermilitarização das forças e sua inserção na administração pública.

Também há receio de que Congresso derrube os poucos vetos que amenizam efeitos negativos, assim como derrubou nesta quinta (14) os vetos ao marco temporal e à lei de desoneração de folha salarial.

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A agora Lei 14.751/23 foi aprovada como Projeto de Lei 3054/22 no Senado na última semana, sem debate na casa, por acordo de líderes costurado pelo relator Fabiano Contarato (PT-ES), que é policial civil. Contarato antecipou em seu relatório uma série de vetos que Lula faria a seguir e que dizem respeito às polêmicas e críticas à nova lei.

Os três principais tópicos apontados por Contarato dizem respeito às ouvidorias das PMs, que segundo o PL passariam a ser subordinadas aos comandos das mesmas ao invés de controle civil; a proibição de manifestações políticas por parte de policiais fardados ou utilizando símbolos da instituição; e a atuação das PMs na área ambiental. Há ainda questionamentos sobre a participação de policiais em eleições, cota feminina, comando da PM, serviços de inteligência, entre outros.

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O ministro Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública que agora vai ao Supremo Tribunal Federal, também auxiliou na articulação para aprovar o texto. Agora o Congresso irá avaliar os vetos presidenciais em sessão que ainda não foi agendada.

Mas para compreender os vetos presidenciais, entender suas limitações e como suavizam o texto original, é preciso mergulhar, antes, nas críticas ao projeto inicial.

Entenda as críticas ao projeto

Elaborado por parlamentares bolsonaristas ligados à bancada da bala, que entre outros interesses defendem o lobby das polícias, o projeto foi aprovado na Câmara em dezembro de 2022 com relatoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP). Logo de início chama a atenção que figuras do atual governo também tenham apoiado o texto. Os governistas se defendem que agiram como forma de reduzir danos, ou seja, que sem esses acordos o quadro poderia ser muito pior dada a conjuntura no legislativo.

Em artigo para a Folha, Adilson Paes de Souza (pós-doutorando em psicologia social pela USP) e Gabriel Feltran (professor do Sciences Po, do Instituto de Estudos Políticos de Paris) já alertam logo ao título: “nova lei é pior que decreto da ditadura”.

Eles começam apontando para a manutenção de dispositivo que faz com que as PMs respondam como força auxiliar do Exército e o desaparecimento da autonomia das ouvidorias. “As PMs então passarão a ser muito mais autônomas politicamente”, diagnosticam.

A comparação com o Decreto-Lei 667/69, que regulava até então a atividade policial, é inevitável. Naquela ocasião, como agora tenta-se reiterar, as PMs foram postas como forças auxiliares do Exército, sendo transformadas em verdadeiras polícias políticas logo após o AI-5, em atuação contra os chamados “inimigos internos”. O artigo que em 1969 colocava as PMs como forças auxiliares do Exército era o 1º . Inicialmente extinto pela nova lei, retorna logo a seguir, no seu artigo 2º . “A lei mimetiza a organização policial do período mais pesado da repressão militar,” dizem os articulistas.

“Livres de controle, interno ou externo, as PMs poderão, por exemplo, 'produzir, difundir, planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência' (artigo 5º, inciso XI), o que permitiria criar órgãos semelhantes ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e marchar sobre as competências atuais das polícias civis e da Polícia Federal”, agregam os autores que também dizem que a LOPM é uma espécie de “harmonização facial” da lei da ditadura.

Sobre as cotas de 20% para mulheres nas forças policiais, eles apontam que a normativa serviria, na prática, mais como um teto que como uma cota mínima.

Um outro tema polêmico está no artigo 5º, inciso 16: “emitir manifestação técnica, no âmbito de suas atribuições constitucionais e legais, quando exigida a autorização de órgão competente em eventos e atividades em locais públicos ou abertos ao público que demandem o emprego de policiamento ostensivo ou gerem repercussão na preservação da ordem pública, realizar a fiscalização e aplicar as medidas legais, sem prejuízo das prerrogativas dos demais órgãos de segurança pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Em outras palavras, a PM poderá decidir sobre a realização de manifestações políticas e eventos culturais em espaços públicos, ao invés de apenas realizar a segurança dos mesmos. Na prática, e dado o histórico da corporação, os críticos preveem uma série de episódios de censura contra aquilo que possa se enquadrar como 'simpático' ao “inimigo interno”, como ocupações de movimentos sociais, atos públicos e até mesmo shows de hip hop, funk e outros gêneros musicais.

“Estamos diante de um hipermilitarismo que combate os esforços civis para democratizar a segurança pública, reforçando a rota que nos trouxe à tragédia atual da segurança pública brasileira (…) A LOPM é antidemocrática e autonomiza e politiza as PMs, enquanto finge fazer o oposto, e exacerba a hipermilitarização, reduzindo sensivelmente a transparência e o efetivo controle da sociedade e, sobretudo, dos governos eleitos sobre os grupos armados estatais”, concluem os articulistas.

O parecer é corroborado pelo cientista político Acácio Augusto, coordenador do Lasintec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento) da Unifesp. Ao podcast “Medo e Delírio em Brasília”, o pesquisador aponta para o que considera central nesse debate, lembrando as recentes greves e motins das forças de segurança, bem como o golpe de Estado ocorrido na Bolívia, em 2019, que teve forte participação das polícias.

“O controle de governadores sobre polícias é relativo. Seria exagero dizer que não há, mas é relativo na medida que as PMs são forças com capacidade de atuação política muito grande. Dos anos 90 pra cá temos o trabalho cada vez mais precarizado e desregulamentado, registrando uma queda na capacidade de pressão das organizações de classe. Nesse contexto, os trabalhadores da segurança vão se constituindo numa das poucas carreiras com capacidade de organização e geração de identificação de classe. Além da força política que os militares já têm, essa nova lei mostra a força política dos policiais. O mal debate é discutir pormenores da lei, o bom debate é o que é esse crescimento da força das policias representa no debate público e na politica nacional”, afirma.

Vetos de Lula

Ao todo, Lula vetou 28 itens do texto original. Seis deles por gerar encargos financeiros à União e aos estados sem que tivessem oferecido uma fonte orçamentária. Entre eles o sistema de proteção social que teriam os mesmos padrões das Forças Armadas, prevendo indenização e seguro de vida para acidentes e pensão para cônjuge ou dependente quando o PM for preso provisoriamente, estiver em cumprimento de pena ou por falecimento - entre outros itens.

Já entre os vetos que suavizam a lei está, em primeiro lugar, a questão das ouvidorias. O presidente Lula manteve o controle civil das ouvidorias das PMs uma vez que dá-lo aos comandantes “fragilizaria a fiscalização e controle da atividade policial pela sociedade”. De acordo com o veto, isso iria de encontro ao interesse público.

Outro veto foi feito em relação a manifestações políticas. Se o texto original previa a possibilidade de delas participar caso os policiais não ostentassem fardas e símbolos da corporação, Lula vetou tal possibilidade. Policiais e bombeiros militares estão proibidos de participar de atos políticos com ou sem farda. Também fica proibida a filiação partidária por parte dos agentes.

Também foram vetadas a cota feminina de 20%, a participação das PMs no planejamento e em ações de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e a proibição de que agentes exerçam outras funções, públicas ou privadas, a não ser a de magistério.

Outro ponto da lei, devidamente vetado por Lula, diz respeito a participação dos agentes em ações destinadas à garantia dos poderes constituídos. O item tinha sido incluído no projeto como um subterfúgio que permitiria a tresloucada interpretação do artigo 142 da Constituição que versa sobre a possibilidade uma “intervenção militar”.

É claro que todos esses vetos suavizam os efeitos iniciais da lei, mas uma série de especialistas ouvidos pela imprensa insistem que não são suficientes. Ouvido pelo G1, o tenente-coronel aposentado da PMSP, Adilson Paes de Souza, acredita que os vetos mudam pouca coisa em relação ao texto original. "Temos uma polícia hipermilitarizada e que avança sua atuação para outros setores da administração pública. Isso é perigoso para a nossa democracia", declarou.

O que ficou de fora dos vetos

O principal ponto que ficou de fora dos vetos é o caráter das PMs de força auxiliar do Exército. Esse é o ponto central da LOPM, que dá maior autonomia de atuação das PMs em sua “guerra” contra “inimigos internos”. É justamente esse o dispositivo que reafirma a força das polícias militares como classe no debate público e na governança, além de dar uma espécie de carta branca para operações de vingança, como a registrada no Guarujá, em São Paulo, quando mais de 30 pessoas foram assassinadas durante uma série de operações na região que buscava “esclarecer” o assassinato de um agente da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar).

As PMs agora também estão vinculadas diretamente aos governadores, sem que haja a necessidade da existência de uma secretaria de segurança pública para intermediar a relação de comando.

Por outro lado, Lula manteve itens que são de interesse público como a proibição de agentes gravarem e divulgarem imagens de pessoas sob custódia.

Por fim, em relação a eleições, ficou decidido que caso o oficial que queira se candidatar tenha menos de 10 anos de serviço ele deve ser afastado no dia seguinte ao registro junto à Justiça Eleitoral. Se tiver mais de uma década de serviços, passa para a reserva remunerada apenas se for eleito, no dia da diplomação.