*Matéria originalmente publicada em primeiro de outubro de 2022. Leia aqui.
Este 2 de outubro marca o aniversário de 31 anos do Massacre do Carandiru, o mais importante de nosso recente período democrático, tanto no sentido de entender os rumos das políticas de segurança pública, como o surgimento das principais facções criminosas e todo o espectro da violência que assombra a população. Enquanto nas ruas a carnifica segue à todo vapor, na política o medo das maiorias tem sido habilmente manipulado nas últimas décadas, especialmente pelos políticos de direita que defendem justamente o modelo de militarização que produz e reproduz esse medo e violência.
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Temas que inspiraram e fundamentaram na sociedade brasileira discursos como “bandido bom é bandido morto” e todo um imaginário punitivista e belicoso que coloca o cidadão preto, pobre e periférico como uma espécie de inimigo interno, esteja ele nas ruas ou no sistema prisional. O acontecimento ultrapassou sua realização prática e até hoje suscita grandes debates nacionais. Sobretudo em um 2023 que acompanhamos, estarrecidos, as carnificinas no Guarujá (SP) e na Bahia, com dezenas de mortos pelas polícias locais, também vemos se repetirem práticas e argumentos que remontam àquele 2 de outubro de 1992.
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À época, números oficiais deram conta de que a ação da Polícia Militar na Casa de Detenção de São Paulo, buscando conter uma suposta rebelião iniciada em quadra de futebol, deixou 111 internos mortos no então maior presídio da América Latina, localizado a poucos quilômetros do centro de São Paulo e a alguns metros da principal rodoviária da cidade, no coração da zona norte da capital.
Naquele momento a TV Globo denunciava que a prisão vivia uma superlotação. Com capacidade para cerca de 4 mil presos, o Carandiru abrigaria na semana do Massacre quase o dobro disso.
Nesse contexto de uma prisão superlotada, onde carecem recursos e atenção adequada aos detentos, um desentendimento na quadra de futebol entre grupos rivais teria levado um preso a tomar uma paulada, ao que seus amigos reagiram, desencadeando uma briga generalizada.
“Ele não queria brigar, daí o outro deu uma facada nele e os amigos entraram. Os funcionários tentaram apartar, mas não conseguiram - e ficaram assustados por terem sido muitos os presos envolvidos na briga naquela hora. Assim os funcionários saíram gritando que era uma rebelião”, disse um sobrevivente do massacre à reportagem da TV Globo na época dos acontecimentos. Essa e outras declarações foram resgatadas no último dia 23 de setembro de 2022 pelo podcast O Assunto, da jornalista Renata Lo Prete.
A notícia da ‘rebelião’ chegou às principais autoridades do Estado. Após a ordem da operação chegar às tropas da PM e à diretoria do presídio diretamente do governador Luiz Antônio Fleury Filho, toda a região foi cercada e 500 policiais armados e com cães se preparavam para entrar na cadeia. Sob ordens de “resolver o conflito”, os policiais protagonizaram o maior massacre carcerário da história do país, repleto de cenas de brutalidade extrema.
Presos relatam que os homens do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais da PMSP), liderados pelo comandante Wanderlei Mascarenhas, metralhavam presos rendidos dentro dos ‘xadrezes’, como chamam as celas.
Os relatos dão conta que os policiais militares riam enquanto matavam os detentos com tiros e facadas. Entre diversas histórias de horror e brutalidade, sobreviventes contaram que policiais colocaram um grupo pelado e de bruços no chão de um pátio e iam chamando dois por vez para serem mortos a punhaladas diante dos demais. "Feridos eram jogados no buraco do elevador para morrerem com a queda no fosso do mesmo. Eu vi um holocausto”, disse um sobrevivente ao podcast.
Na sequência da matança, detentos que sobreviveram foram obrigados a alterar as cenas dos crimes. “Me tiraram de madrugada da cela, só de calção, com mais dez companheiros, nos encheram de pauladas e nos mandaram carregar os corpos, disseram que ‘esse é o futuro de vocês, a morte’”, relatou outro sobrevivente. Os corpos eram levados até a sala onde funcionava a barbearia do Pavilhão 9 e relatos dão conta de que nesse meio tempo, alguns homens eram mortos enquanto desciam com os corpos das escadas por homens da PM ou eram trancados dentro de celas para serem dilacerados por cães da polícia.
111?
Há controvérsias quanto aos números finais. José Aguiar, sobrevivente do Carandiru, declarou em 2 de outubro de 2015, durante manifestação que rememorou os então 23 anos do massacre que “estamos cansados de saber que foram mais de 300 pessoas”.
No dia do massacre, Aguiar era um dos detentos que estavam “marcados” (para morrer). Antes do massacre, ele passava seus dias no Carandiru ocupando duas funções. Durante a semana trabalhava no escritório jurídico da cadeia ajudando a revisar processos – vale lembrar que boa quantidade dos mortos não havia sequer sido julgada e condenada. Aos finais de semana era árbitro da FIFA, a Federação Interna de Futebol Amador, “criada pelo sacana do Waldemar Carabina”, como explica José Aguiar, “que sobreviveu por haver se escondido em um armário”.
“No dia do massacre os policiais chegaram ao Carandiru entre 6h30 e 7h da manhã. À noite, no noticiário, isso foi divulgado como se tivessem chegado às 11 horas. Tudo o que saiu na imprensa naquele dia foi mentiroso. Os responsáveis até foram condenados mas nenhum foi pra cadeia, estão todos impunes. Estou com 73 anos, correndo atrás, pedindo reparo para que esse massacre seja esclarecido e que os remanescentes dos responsáveis sejam punidos. Assim como eu passei muitos anos no Carandiru, por que esses caras ficam impunes?”, lamentou o sobrevivente há exatos 8 anos.
Não conseguimos localizar Aguiar, que teria 80 anos em 2022. De qualquer forma, vivo ou morto, ele não viu seus algozes punidos.
Aguiar esteve no Carandiru entre 1982 e 1996, quatro anos após o massacre e seis anos antes do fechamento da Casa de Detenção, que ocorreu em 2002. Após o fechamento, o local onde funcionou a Casa de Detenção de São Paulo se transformou na enorme Praça da Juventude. Ainda funciona um presídio feminino vizinho ao local.
Os efeitos do massacre ao longo de três décadas
31 anos depois, o massacre ainda é lembrado e tem grande importância no debate público, sobretudo no que se refere a reorganização das políticas de segurança no pós ditadura. É o que nos explicou há um ano o cientista político Acácio Augusto, professor da Unifesp e pesquisador de tecnologias de segurança no Lasintech (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).
“Em primeiro lugar preciso citar toda uma reorganização do sistema penitenciário paulista. Em 2002 a Casa de Detenção é desativada, mas isso significa um espalhamento dos sobreviventes em várias cadeias pelo interior de São Paulo, inclusive com o argumento de levar a essas cidades alguma movimentação econômica. Além disso, há toda uma discussão sobre direitos humanos, humanização da polícia e sobre mudanças nas regras da corporação. Grupos de pesquisa universitários vão escrever sobre isso, levar o caso do Carandiru para cortes internacionais como Corte Interamericana de Direitos Humanos buscando pautar mudanças no corpo policial e reformas no sistema penitenciário. Isso obviamente só significou uma expansão do sistema penitenciário uma vez que não se falava no ‘super encarceramento’, mas em ‘superlotação das cadeias’, e a resposta para isso seria a criação de mais presídios, além de uma necessidade de treinamento de Direitos Humanos sobre homens da PM e da polícia penal”, explica o pesquisador.
Para Augusto, esse aumento de unidades prisionais buscando combater a “superlotação” foi um dos fatores que culminaram na fundação do Primeiro Comando da Capital (PCC) em agosto de 1993 na Penitenciária de Taubaté. A facção foi fundada justamente por sobreviventes do massacre que buscavam criar uma espécie de associação que garantisse seus direitos básicos diante da impotência em relação à Justiça, imprensa e principalmente das forças de segurança que atuavam nas cadeias.
“A covardia praticada pelos PMs nesse dia motivou a formação do que se conhece hoje como PCC. À época havia várias facções ou gangues no sistema carcerário paulista, cuja ‘briga entre facções’ serviu como motivação para a operação que desdobrou no massacre”, elucida Acácio Augusto.
O pesquisador ainda colocou que o massacre serviu como um pontapé inicial para a entrada de agentes de segurança na política, a começar pelo comandante das tropas, o famoso Coronel Ubiratan, formando bancadas e lobbies em torno de interesses das polícias na manutenção de uma política de segurança pública truculenta.
“O comandante da tropa, Coronel Ubiratan, já em 1994 se candidata a deputado estadual por São Paulo pelo PPB. Ele não ganha, mas fica com suplência e, por conta da saída do titular, vai exercer o cargo de 97 a 98, até ser eleito em 2002. Isso obviamente o ajudaria a não ser preso, mas além disso, e como a própria atuação dele enquanto deputado mostra, há a formação de um lobby da segurança pública – ele próprio compôs todas as comissões da pasta enquanto esteve na Alesp, como vários policiais que viraram políticos e se organizaram no que é chamado jornalisticamente de ‘bancada da bala’”, pontua.
Ubiratan foi assassinado em 10 de setembro de 2006 em circunstâncias ainda hoje muito mal explicadas. O crime que o vitimou, supostamente cometido por uma amante, segue sem uma resolução. Ele morreu sem prestar esclarecimentos à sociedade sobre o ocorrido em 1992. Fica na memória a reivindicação da memória da matança por parte de Ubiratan através do uso do número 111 (na sequência do 14 de seu partido) na campanha que o levou ao cargo de deputado estadual por São Paulo em 2002. Ele foi condenado em 2001 a 623 anos de prisão por 102 mortes.
Já Wanderlei Mascarenhas, que comandou os homens do Gate durante o massacre, seguiu carreira acadêmica e tornou-se professor dos cursos de pós-graduação de Políticas de Gestão em Segurança Pública na PUC-SP. Também é autor de livros sobre o tema e escreve para sites especializados em segurança pública.
Idas e vindas na Justiça
Em 1993 o Ministério Público de SP acusou os policiais pelo massacre e em 1998 tornou réus 85 desses policiais. Mas no final das contas, 74 PMs foram condenados pela morte de 111 presos no Massacre do Carandiru após passarem por cinco julgamentos. O primeiro ocorreu em 2001, quase dez anos após o massacre, e os outros 4 juris foram entre 2013 e 2014, quando houve forte pressão popular contra a violência policial no país, além do desenvolvimento de movimentos específicos de vítimas de massacres perpetrados por agentes do Estado.
Em todos os juris os réus foram condenados a penas que vão de 48 a 624 anos de prisão. As condenações chegaram a ser anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 2016 e novamente em 2018 mas foram restabelecidas em junho de 2021 pelo próprio TJSP.
Em 1 de agosto de 2022, o ministro Luís Roberto Barroso, do Superior Tribunal Federal (STF) negou recurso dos policiais que buscava derrubar as condenações e reafirmou a sentença da Justiça paulista. No entanto, até hoje, nenhum policial foi preso.
No dia seguinte da decisão de Barroso, em 2 de agosto de 2022, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou o PL 2821 de autoria do deputado Capitão Augusto (PL-SP) que busca anistiar os PMs processados por envolvimento no massacre. O projeto aguarda apreciação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara para ir a plenário.