Na semana em que a superprodução Wakanda Forever estreia no Brasil, alunos de um colégio particular de Porto Alegre (RS) reagem a agressões racistas após comemorarem a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições presidenciais.
"Não recuamos ontem, não recuamos hoje e não recuaremos amanhã. Por uma escola livre, justa e democrática." Assim se encerra o manifesto de estudantes bolsistas do Colégio Farroupilha, em protesto diante das mensagens de ódio que alunas bolsistas receberam na semana passada. O texto deve ser lido em ato a ser realizado em frente à escola. Além do documento e da manifestação, as estudantes também registraram boletim de ocorrência.
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O colégio suspendeu as aulas na segunda e na terça-feira após as eleições justamente para evitar confrontos. Entretanto, ao comemorar a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva em grupo privado de mensagens, duas alunas bolsistas receberam agressões relatadas no manifesto: “Te prepara pra comer lixo na rua”, “a gente que paga tua bolsa”, “vai embora, aqui não é o teu lugar”, “vamos cortar a tua bolsa”, “tomara que tu passe fome”, “quando tu não conseguir emprego, não vou fazer caridade e ser tua patroa”.
Outras alunas, que se solidarizaram com as bolsistas, também foram atacadas. Longe de se intimidar, as estudantes printaram as mensagens, registraram boletim de ocorrência, escreveram o manifesto e estão agendando uma manifestação. O documento começa deixando claro a quem se destina o recado: “Aos estudantes filhos dos cidadãos de bem, hoje é o dia em que a injustiça vai acabar. Hoje é o dia em que não mais ouviremos calados todas as ofensas, todos os discursos de ódio, os atentados a nossa moral e, acima de tudo, o ódio de classe que destilam contra nós, bolsistas”.
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O texto do documento ainda destaca o mérito dos estudantes bolsistas e evidencia o motivo do ódio expresso pelos colegas: “A verdade é que vocês têm medo. Vocês precisam que os filhos e filhas das empregadas, motoristas e funcionários de vocês continuem alienados, pra que vocês se mantenham imersos no mar de dinheiro e poder que acham que têm. O ódio de vocês por ver um filho de um trabalhador pobre tendo, por conquista própria, acesso a algo que vocês têm porque pagam é justamente o que incomoda tanto vocês”.
Ministério Público
A promotora Regional da Educação de Porto Alegre, Ana Cristina Ferrareze, encaminhou o caso junto a outros episódios, como a live ofensiva registrada no Colégio Israelita, ao Núcleo do Ato Infracional do MP-RS, para adoção das providências consideradas cabíveis na esfera das infrações perpetradas pelos adolescentes. A acusação foi remetida também à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude – Núcleo Articulação/Proteção.
As informações serão remetidas, ainda, à 1ª Coordenadoria Regional da Educação, para ciência e adoção de providências e medidas cabíveis. “Pedimos aos colégios que nos informem oficialmente a identificação dos adolescentes envolvidos e quais medidas foram ou serão aplicadas. Depois da manifestação formal, serão realizadas audiências extrajudiciais. Temos certeza de que atitudes como essas, que são graves, que nos chocam, devem ser punidas. As condutas dos adolescentes precisam ser responsabilizadas também pela área do ato infracional, bem como investigadas as condutas dos pais ou responsáveis”, ressalta a promotora.
Posição da escola
O Colégio Farroupilha comentou o episódio com uma nota, tornada pública na sexta-feira (4), em que repudiou “discursos ou ações que disseminem qualquer tipo de intolerância”. A escola advertiu também que não diferencia estudantes pagantes de bolsistas e informou que está contatando as famílias das vítimas. “Houve a imediata aplicação das penalidades previstas no Código de Conduta e Convivência da instituição”.
As estudantes agredidas, entretanto, reclamam que não receberam nenhum pedido de desculpas formal da escola em relação ao comportamento ofensivo de alunos vinculados à instituição. “A direção passou nas salas de aula e tentou apaziguar os ânimos por conta da formatura, que está próxima. Mas não houve nenhuma retratação, nenhum pedido de desculpas a nós ou a nossas famílias”, disse outra estudante agredida.
Leia o manifesto na íntegra:
Aos estudantes filhos dos cidadãos de bem, hoje é o dia em que a injustiça vai acabar. Hoje é o dia em que não mais ouviremos calados todas as ofensas, todos os discursos de ódio, os atentados a nossa moral e, acima de tudo, o ódio de classe que destilam contra nós, bolsistas.
“Te prepara pra comer lixo na rua”, “a gente que paga tua bolsa”, “vai embora, aqui não é o teu lugar” “vamos cortar a tua bolsa”, “tomara que tu passe fome” “quando tu não conseguir emprego, não vou fazer caridade e ser tua patroa”. Esses foram alguns dos absurdos direcionados a estudantes bolsistas da terceira série do ensino médio por simplesmente fazerem uso do maior direito natural que temos, que é a liberdade de expressão, para a paz.
Não precisamos identificar quem disse isso, por que cada um de vocês expressa esse tipo de sentimento no olhar toda vez que enxergam um estudante que existe dentro dessa instituição por sua própria conquista. O conflito que se instaurou extrapolou a esfera política em níveis estrambólicos, e virou um show de propagação de ódio de classes.
Bastou uma pequena provocação pra vocês mostrarem que não é nosso posicionamento político que incomoda, mas sim a nossa existência. Enquanto muitos estudantes dessa escola estudam aqui simplesmente porque os papais têm condições de pagar, muitos de nós estuda aqui por pura e exclusiva conquista nossa. Cada estudante bolsista fez parte de um intenso processo seletivo pra merecer estudar aqui. Muitos de nós já tivemos de abdicar de muitas oportunidades, passar por inúmeras dificuldades financeiras, e fazer com que nossas famílias lutassem muito por estudar aqui. Ainda assim, vocês acham que tem o direito de nos tratar como inferiores.
A verdade é que vocês têm medo. Vocês precisam que os filhos e filhas das empregadas, motoristas e funcionários de vocês continuem alienados, pra que vocês se mantenham imersos no mar de dinheiro e poder que acham que têm. O ódio de vocês por ver um filho de um trabalhador pobre tendo, por conquista própria, acesso a algo que vocês têm porque pagam é justamente o que incomoda tanto vocês.
Um dia ouvi de um professor “política se faz com enfrentamento” e é exatamente isso que representamos. Enfrentamos a ordem social que nos oferece nada mais que uma vaga no subemprego. Subvertemos a consciência de vocês, se é que têm uma, quando provamos sermos tão capazes quanto melhores que vocês em inúmeros aspectos. E é disso que vocês morrem de medo. uma pessoa pobre tendo acesso aos mesmos espaços de vocês. O ódio de vocês só demonstra que o simples fato de existirmos e pensarmos dentro dessa escola é o que mais amedronta vocês.
Aos meus companheiros bolsistas e estudantes aliados, resistam. Nunca foi fácil se manter aqui dentro, mas se falarmos sobre tudo que nos fazem passar, talvez o fardo fique mais leve. Somos dezenas, talvez centenas de pessoas sozinhas, mas juntas, temos a capacidade de mover o mundo, pra muito além dessa escola. Por que cada um de nós carrega nas costas um histórico de muita luta pra nos mantermos onde estamos. E é isso que nos faz sermos merecedores de tudo que almejamos, porque nós podemos tudo e ninguém é nem nunca vai ser melhor ou maior do que nós.
Então hoje, eu coloco um fim na tradição de passabilidade que esses alunos pagantes têm em tratar qualquer pessoa do jeito que bem entendem, e não sofrerem as consequências disso. A partir de hoje, toda ofensa de cunho político, ideológico, social, racial, sexual, e de classe vai ser tornada pública e terá a devida justiça. Não recuamos ontem, não recuamos hoje e não recuaremos amanhã. Por uma escola livre, justa e democrática.
*Com informações do Sul21