É urgente o confronto e a desconstrução de valores androcêntricos no direito penal para garantir às mulheres uma vida livre de violênciaPor Dolores Mota, doutora em Sociologia, em Adital. Foto de Denis Bocquet.
O feminicídio/femicídio é um conceito em construção, que se encontra em desenvolvimento e, como afirma Gómez (1), com base em Sandoval, "el asesinato de mujeres debe ser problematizado en el marco de las grandes estructuras del patriarcado y la misoginia” (p. 22). Na medida em que avança uma sensibilidade social frente à violência contra a mulher e os Estados se comprometem com ações e leis para punir e prevenir essa violência, tem avançado no âmbito desta questão o debate sobre a tipificação penal do feminicídio.
Tipificar penalmente o feminicídio/femicídio significa defini-lo como crime autônomo, diferente do homicídio, com suas próprias penalidades. O desafio é justamente definir que tipo de assassinato de mulheres pode ser nomeado de feminicídio/femicídio. No entendimento das autoras que foram as criadoras desse conceito, Diana Russell e Jill Radford (2), esse crime é um homicídio decorrente do fato de ser mulher, "em um contexto social e cultural que as coloca em posições, papéis, ou funções subordinadas, contexto que, portanto, favorece e as expõe a múltiplas formas de violência” como explica Vásquez (2008, p. 203) (3).
Mas, esse entendimento ao mesmo tempo em que permite emergir um fenômeno particular e identificável, institui um amplo espectro de situações que demandam posicionamentos políticos para estabelecer diferenciações e critérios para discernir diferentes formas de feminicídio.
No contexto recente de criação de leis de enfrentamento e punição à violência de gênero contra a mulher e ao feminicídio, vigentes ou em curso de aprovação em diversos países do continente latino-americano, identificamos diferentes entendimentos desse crime.
No continente, o Cladem –Comitê de América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher- tem facilitado uma articulação de organizações feministas entre países do continente, do Caribe e Espanha para a investigação sobre feminicídio e a reflexão sobre a tipificação penal desse crime. O site http:www.feminicidio.net dispõe de inúmeros textos e outras publicações referentes a esse tema.
Países com leis de tipificação penal do femicidio/feminicídio.
País
Lei
Definição de Feminicídio
El Salvador
Lei integral para uma vida livre de violência, 2010
Causar a morte de uma mulher por ódio ou menosprezo por sua condição de mulher. Estabelece agravantes que podem elevar a pena até 50 anos, inclusive se o criminoso for funcionário ou autoridade do setor publico e de segurança.
Costa Rica
Lei n. 8.589 de 2007
Morte de uma mulher por quem esta mantém ou manteve relação de matrimonio ou união de fato
Guatemala
Decreto 22 de 2008, adendo à lei de 1999
No marco das relações de poder entre homens e mulheres, matar a uma mulher, por sua condição de mulher,.
Chile
Lei 20.480 de 2010
Matar a uma mulher com a que tem ou tenha mantido uma relação de convivência ou vínculo matrimonial, ou tenha um filho em comum.
Peru
Lei 28.819, que altera o Código Penal, em 2011
É a morte de mulher por um conjugue ou convivente ou pessoa com que tenha tido relação de intimidade.
México
Lei geral de acesso das mulheres a uma vida sem violência, 2007, refere-se a violência feminicida que pode matar a mulher. Leis sobre feminicídio foram criadas em 11 estados.
Morte de uma mulher por conduta ou razões de gênero, havendo relações de parentesco, matrimônio, trabalho, concubinato, sociedade, violação sexual, mutilações, exposição publica do corpo e várias situações.
Nicarágua
Lei 64, do Código Penal, 2012
Assassinatos de mulheres por violência doméstica ou familiar, por razoes associadas com gênero.
Argentina
Anteprojeto de Lei, 2012, em discussão.
Homem que mata uma mulher ou pessoas de identidade feminina, pelo fato de ser mulher,
Fonte: CLADEM (2012) e http://www.feminicidio.net
Observando-se as definições firmadas pelas leis penais dos países acima, sobressai a figura do feminicídio íntimo, aquele cometido por homens com os quais as vitimas mantinham ou haviam mantido relacionamento de casal. Essa questão põe problemas porque nem todos os assassinatos de mulheres decorrentes de condições de gênero são cometidos por esse tipo de femicida. Algumas leis reconhecem a autoria do crime por pais e conhecidos, mas também uma mulher pode cometer esse crime contra uma parceira ou uma rival amorosa. Interessante consultar a legislação de alguns estados mexicanos que instituem o próprio modus operandi, ou a fenomenalidade do crime como definidora do feminicidio, estabelecendo a crueldade, o martírio e sofrimento imposto, a mutilação, o desprezo e a avacalhação ao corpo como expressões de uma violência misógina e de gênero.
O marco jurídico – penal de cada sociedade deve responder a esse tipo de crime resultante de seu próprio contexto sociocultural e puni-lo de modo correspondente com a sua gravidade e com a sua perspectiva de direitos humanos das mulheres, de democracia e de justiça de gênero. O referencial legal que fundamenta essas tipificações do feminicídio é a Convenção de Belém do Pará de 1994, ou seja, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Antony (2011) (4) argumenta a favor da tipificação penal do feminicidio o confronto com um direito androcêntrico que favorece a condição masculina dominante, além de evitar a banalização desse crime, pois o qualifica como grave e ajuda a mudar mentalidades patriarcais de operadores do direito, inclusive juízes. Questionar e superar o caráter de passional desse tipo de crime, muitas vezes descritos como ações impensadas, descontroladas, quando na verdade, são majoritariamente planejados. Mas, a tipificação autônoma do feminicídio não deve se limitar apenas á punição do criminoso, mas estender-se para a garantia dos direitos de outras vitimas como os ascendentes, descendentes, dependentes, desamparados em consequência da morte da mulher. Vale ressaltar que políticas de segurança cidadã para as mulheres devem ter perspectiva de gênero e incluir ações de prevenção do feminicídio.
A Lei 11.340 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha, para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil, não tem dispositivo específico para tipificar e punir o feminicídio. Nesse momento em que foi entregue ao Congresso Nacional uma proposta para o Novo Código Penal Brasileiro, coloca-se na ordem do dia a discussão sobre os assassinatos de mulheres decorrentes de condições sociais e culturais patriarcais, que favorecem violências e crimes misóginos. É urgente o confronto e a desconstrução de valores androcêntricos no direito penal para garantir às mulheres uma vida livre de violência.
Bibliografia1-GÓMEZ, Olga Amparo Sánchez. Feminicidios en Colombia. 2007 – 2009. Bogotá: Casa de la Mujer, Funsarep, Ruta Pacífica, Vamos Mujer, 2010.2-Jill Radford e Diana Russell, Femici tem coordenado ações de: the politics of woman killing (Twayne Publishers, New York, 1992)3-VÁSQUEZ, Patsilí Toledo. Tipificar el Feminicidio? In: Anuário de Derechos Humanos. Universidad de Chile, Facultad de Derecho, Nº 4, ano 2008.4-ANTONY, Carmem. Compartilhando critérios e opiniões sobre femicidio/feminicido. IN: CLADEM. Contribuições ao Debate sobre a Tipificação Penal Femicídio/Feminicídio. Lima: Cladem, 2012. Disponível em: http://www.cladem.org