Também Plop, na meninice, fez – ou fará ainda – coisas de sarapantar. A diferença é que fez – ou fará ainda – em outro idioma, o idioma de Rafael Pinedo, escritor argentino morto precocemente em 2006, aos 62 anos. Pinedo escreveu bastante até os 18 anos, quando, numa crise artística, queimou todos os seus escritos. Anos depois, retomou a literatura, já formado em Ciência da Computação, e escreveu o romance – ou novela; não vêm ao caso agora classificações de gênero – que o consagrou, e que hoje é considerado cult na Argentina, o apocalíptico “Plop”, vencedor do respeitado prêmio literário cubano Casa de las Américas, de 2002. Pinedo ainda escreveu mais dois romances – ou novelas –, sem obter com eles o mesmo sucesso de seu primeiro.
Se em “Macunaíma”, obra frontal do modernismo brasileiro, o herói – sem nenhum caráter – atravessa sua jornada por paisagens opulentas, entre florestas e cidades populosas, em “Plop” o herói vive naquilo que sobrou da civilização. O ambiente da obra é sempre deserto (de plantas e de pessoas), a chuva castiga os poucos sobreviventes, que só dispõem da chuva, quando querem beber água, e os seres humanos e seus vestígios vivem divididos em grupos que estão sempre se desentendendo e mesmo entrando em pugnas violentíssimas. Aliás, o livro de Pinedo é extremamente violento, em tudo: quando os sobreviventes se digladiam, quando fazem sexo e até mesmo quando nascem. Veja-se uma passagem da obra:
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“Antes que ele se levantasse, Plop correu, pisou em sua cabeça e lhe enfiou a faca na garganta.
Os escravos olhavam aterrorizados.
Plop deu instruções:
– O velho não serve. Partam-lhe o crânio de uma vez. A grávida, para o que quiserem.
Os dois da Seita a colocaram de quatro e a usaram. Sua enorme barriga balançava com os empurrões. Ela gozava. Não tinha o tabu do Grupo. Ofegava. Gemia com a boca aberta e a língua para fora.
Plop estava excitado. Esquisito tinha percebido, os outros não. Quando terminaram com a grávida, cortaram sua garganta. Por mostrar a língua. Tiraram seu feto para os porcos.”
A propósito, “Plop” é o nome do herói, que ganhou esse quase apelido aparentemente ziraldiano por causa do som que fizera ao ser expulso do ventre da mãe e cair na lama. Plop nasceu na merda, digamos. A onomatopeia pegou de tal forma que parece que, predestinado, Plop, parido em movimento – os personagens do livro estão sempre se movimentando, como se em breves migrações –, nunca mais conseguiu ser uma pessoa de fato, mesmo quando se tornou Comissário Geral, ou Chefe da Seita (Penedo usa capitulares para uma porção de “coisas”, criando a sensação, no leitor, de que ele está diante de instituições, como o “Assentamento”, a “Célula”, a “Recreação”, o “Karibom” etc.), e passou a ser chupado pela Escrava (são esses os termos usados no livro). Se na sedizente rapsódia brasileira o herói é sem nenhum caráter porque, segundo Mário de Andrade, é filho de um país sem tradição, um país sem caractere, no livro do escritor argentino o protagonista é um ser sem qualquer traço de bonomia, sem o menor sinal de altruísmo, sem características de uma pessoa civilizada, um ser embrutecido pelo que lhe ocorre ao longo da vida, mas pelo “espírito do tempo” mesmo.
Antes disso Plop passa por um longo período de (de) formação, depois de ser deserdado pela mãe – mas sem qualquer drama: no livro de Rafael Pinedo os acontecimentos, que não são muitos, se dão sem derramamento algum, sem ênfase, sem grandiloquência –, faz amizades, como com o Urso e Tina, e alcança o posto máximo de um bando. Até cair em desgraça.
A história foi escrita com absoluta sobriedade. Não há qualquer tipo de arroubo no estilo. Pinedo conduz a trama quase em silêncio, e conduz para lugar algum, começando-a de lugar algum, apesar da existência de um prólogo e de um epílogo, profundamente conectados um com o outro. Não há passado nem futuro no lugar por onde trafegam Goro, Urso, Tina e o próprio Plop.
Publicado por aqui, este ano, pela editora Rua do Sabão, com tradução de Carolina Zweig, “Plop” é um livro que causa forte impacto em qualquer tipo de leitor, seja pelas cenas de violência – estrutural, inclusive –, seja pela qualidade literária. E não importa saber se Rafael Pinedo leu Macunaíma: seu livro se impõe por méritos próprios.
*Henrique Wagner é poeta e crítico literário. Autor de As costelas de Michelângelo.