Por Henrique Wagner*
Em “A Odisseia de Penélope”, breve livro da escritora canadense Margaret Atwood, a mítica personagem de Homero, e de outros tantos autores mais anônimos que Homero, filha de Icário de Esparta e prima da bela Helena de Troia, mesmo que tenha se empoderado, tornando-se narradora (post-mortem) de sua própria história, vive não uma Penelopeia, mas ainda uma Odisseia, a começar pelo próprio título do livro. A Penélope de Atwood não age, reage a Odisseu, e, desse modo, vive ainda a partir dele, mesmo que dê protagonismo às doze mulheres - escravas - enforcadas por Ulisses, quando de sua volta de Troia. Essas escravas formam o Coro, que canta e declama, no livro de Atwood.
Te podría interesar
A Penélope de Luciana Hidalgo, premiada autora da biografia de Arthur Bispo do Rosário (pela qual recebeu o Jabuti; a autora recebeu outro prêmio Jabuti com o livro “Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura”) e ainda de ensaios e romances, é uma mulher de trinta anos, sem um Telêmaco para cuidar, que leva uma vida ao rés do chão. Não reage ao patriarcado como ativista porque está muito ocupada com o seu estar no mundo, que se confunde, naturalmente, com o estar no mundo de uma mulher, e assim vai palmilhando seu caminho em direção ao que é incerto, mas também ao que se pode esperar de alguém com um passado em que uma tragédia determinou toda uma vida - é bom lembrar que estamos diante do eco de uma personagem da Grécia antiga.
Te podría interesar
A gaivota que não voa (é mais ou menos com essas palavras que o romance se inicia, e como o narrador se refere a Penélope, e cuja imagem nos remete ao albatroz de Baudelaire) vive em uma cidade litorânea, em algum país tropical, no século XXI, mora sozinha, perdeu os pais em um grave acidente de carro (a mãe, professora de mitologia grega; o pai, um latinista), e tem um grande amigo, quase tão cínico quanto Diógenes, que mora no mesmo edifício onde ela mora. A jornada da heroína começa na praia, em sua longa caminhada matinal repleta de observações a respeito do lugar, mas, sobretudo, a respeito da própria Penélope e sua relação com o outro. Ou os outros, já que além da psicologia das massas, vemos na história a psicologia do indivíduo, assim como a corporificação de uma metafísica que nem sempre se mostra por meio de constructos. Penélope, dessa forma, se envolve com diversos rapazes, como toda mulher de sua idade (e não só de sua idade), enquanto é envolvida por uma trama que, páginas mais tarde, coloca nossa heroína em uma faculdade de arquitetura, em uma biblioteca de universidade (na condição de assistente de bibliotecário), em uma manifestação na rua contra o movimento neofascista do governo de seu país nem tão tropical assim, e, por fim, em um grupo de estudos gregos, onde conhece Theo, o facilitador do grupo, professor de grego. Durante todo esse percurso de gaivota que não voa, Penélope descobre o mundo por meio de sua aretê (“existirmos a que será que se destina”). E é nesse mundo-destino que surge o jovem marxista Lucas, que recita trechos de O capital, de Karl Marx, em seu modesto apartamento de estudante universitário. Mundo-destino e utopia de lugar:
“Penélope se nega a voar, navegar ou adentrar interiores do país por terra. Essa cidade é a sua ilha rochosa cercada de água. Pra que oceanos, bússolas, horizontes; norte pra quê, se o que importa é ficar, cumprir nessa geografia o seu Destino, jamais partir?”.
Os homens do tempo de Ulisses frequentemente viajavam para descobrir e conquistar novas terras, e era comum terem de guerrear com os “bárbaros”, habitantes da terra a ser conquistada. Ulisses viajou para guerrear. Penélope não pretende viajar porque não pretende entrar em guerra contra povo algum. Ela participa de uma manifestação pacífica contra o neofascismo de seu país e acaba sendo machucada pela polícia neofascista. Ela é vítima, portanto. Esse trecho do romance de Hidalgo lembra um famoso e belo soneto do primeiro Mario Quintana, aquele do livro “A rua dos cataventos”, publicado abaixo na íntegra (porque ele inteiro reforça a imagem do trecho supracitado):
A Rua dos Cataventos ( XX )
(a Athos Damasceno Ferreira)
Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado…
Quanto tempo, meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!
Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas… E afinal sem norte,
Como o velho Sindbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte…
Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo
Pra que partir? Sempre se chega, enfim…
Pra que seguir empós das alvoradas
Se, por si mesmas, elas vêm a mim?
Uma forma é bela se ela constitui em si mesma um todo perfeitamente harmonioso. O Belo, portanto, é a forma manifesta do Bem, diria Platão. Filha de uma mitóloga e amante da Grécia antiga, Penélope não escapa aos princípios da formação do homem grego (Paideia), mas atualiza-os quando luta contra a polícia militar nas ruas e se machuca com alguma gravidade. Essa Penélope militante é, no entanto, a mesma que experimenta todos os prazeres e tecnologias de sua idade e de sua época, como atesta o trecho abaixo:
“Desinstala o aplicativo de encontros do celular e deixa outra risada nervosa disparar da garganta. O dia está estranho, o motorista há de entender sem que ela explique. Tudo o que quer é chegar em casa e passar uns dias desenhando ou tricotando. Recentemente Joana a ensinou a tricotar, última moda entre jovens descoladas estressadas. Pénelope duvida da sua paciência para o tricô, no manejo de agulhas grossas e compridas, então já se vê comprando um tear a ser instalado bem no centro do apartamento. Para tecer teias finas enquanto espera. Pelo que, por quem, por dias melhores, hão de vir”. Página 155.
Aqui é importante registrar que a protagonista “se vê” comprando um tear, sem o comprar de fato. Em momento algum de sua jornada revelada por Hidalgo, Penélope aparece comprando um tear, e menos ainda fazendo uso de um. A autora opera por meio do chiaroscuro , do contraste, mostrando o não para realçar o sim, mostrando o sim pelo não. E como não lembrar de Sócrates?
Vivendo o antropoceno com absoluta consciência, Penélope, atualíssima e antenada, experimenta a praia tanto como uma mera banhista quanto como uma observadora da condição humana e da involução do homem, que ignora os perigos da ira de Gaia:
“Ela deveria contar a ele apenas a ele a sua Penelopeia: seu corpo à deriva num areal branco frequentado por narcisos fugazes e ninfos vaporosos; o canto dos sereios que surfam e kitesurfam no mar tropical; a gaivota das asas trêmulas ao vento a conduzindo a parte alguma; o gosto da água salgada na boca a cada naufrágio; a longa e insensata espera sem fiar-desfiar uma só lã”.
E é assim, com um pé na tradição e o olhar sobre os muros de uma tentativa de golpe de estado em seu país, que Penélope, essa jovem mulher do século XXI, encontra seu ponto de mutação. Penélope vive em seu tempo sem abrir mão do passado, onde se encontram seus pais, a mãe zelosa que lia para a filha a Odisseia, e o pai lacaniano, aquele das leis, que corrigia todo e qualquer deslize no idioma materno. O “Belo e o Bom” que talvez tenha escapado a Margaret Atwood de “A Odisseia de Penélope”.
P.S.: é absolutamente válido registrar que o livro de Luciana Hidalgo, um romance combativo (toda a obra da autora é combativa), chegou às livrarias alguns meses antes do fatídico dia 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram e depredaram áreas do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal. Sim, parecia ficção. Mas para Penélope provavelmente pareceu uma consequência natural de diversos atos cometidos pelo ídolo dessa gente fanática: o ex-presidente Bolsonaro açulou seus seguidores diversas vezes, incitando-os contra o STF e contra a democracia, ao longo de seu mandato de infinitos quatro anos.
*Henrique Wagner é poeta e crítico literário. Autor de As costelas de Michelângelo.