Sem a pretensão da exaustividade, o que é tarefa praticamente impossível em si, e ainda mais nestes tempos da chamada versão cultural do capitalismo tardio e neoliberal (leia-se da pós-modernidade), seguem algumas observações que se somam às muitas já feitas sobre a recente chegada do Papa Leão XIV num mundo em guerra.
Diante do contexto sugerido, cabe dizer que vivemos atualmente num mundo não somente em guerra como aquelas convencionais que tristemente se dão na faixa de Gaza e na Ucrânia, mas também em guerra híbrida contra a democracia em vários cantos do planeta. O lavajatismo “brasileiro” é prova inconteste das ações que o império promove quando pretende manter ou ampliar o controle sobre ativos das neo-colônias.
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Como nem sempre querem ou podem ser explícitos, enviam e/ou treinam neopentecostais de todas as matizes, espionam governos após descobertas economicamente promissoras, “colaboram” com – em verdade, treinam – “forças-tarefas” (e chegam a dar prêmios “acadêmicos” a alguns que mal sabem falar), alimentam os cães da extrema-direita, and counting. É difícil ter paz e promover o desenvolvimento nacional no “sistema” Brasil quando o império ataca e contra-ataca de tempos em tempos – sim, Star Wars é uma metáfora da realidade que todos deveriam assistir, especialmente a trilogia prequel (episódios I-II-III), na qual George Lucas apresenta magistralmente como se mata a democracia por dentro, ludibriando até mesmo os que lutam por ela, e fazendo o império do fascismo ascender sem misericórida na direção do poder sem limites.
Ainda sobre contexto, não se pode esquecer o Papa Francisco[1]. Literalmente, temos Leão XIV porque tivemos Francisco, o que se pode afirmar em vários sentidos. Francisco não somente nomeou bispo o Padre Prevost, mas também o elevou a cardeal e o chamou para atuar num dos mais importantes dicastérios – num “ministério” – do Vaticano, a congregação para os bispos. Em mesma linha, Francisco foi claramente um sopro de ar fresco sobre a Igreja desde o Concílio Vaticano II e, em perspectiva cristã, um sopro vindo do próprio Espírito Santo do Deus verdadeiro. Esse importantíssimo encontro de bispos do mundo inteiro foi convocado pelo Papa João XXIII, a quem podemos identificar como o elo entre Leão XIII e Francisco/Leão XIV (voltaremos a esse ponto).
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First things first, o Papa Leão XIV não veio dos Estados Unidos da América tal e qual vem sendo propagado pela mídia norte-americana e suas sucursais na mídia mainstream “brasileira”. Sim, ele nasceu em Chicago, e ali estudou para se tornar o Padre Prevost. Mas vale ressaltar “em Chicago”, onde a teologia predominante não é equivalente à economia neoclássica dos Chicago boys. Pra ficar num exemplo, Chicago é a terra do recém-falecido David Tracey, um expoente da boa teologia estadunidense com grande contribuição sobre a modernidade, a pluralidade, o poder e a marginalização etc. (assim como aqui em Boston temos Harvey Cox, Shawn Copeland, Thomas Groome, Margaret Guider, e muitas/os outras/os). E, antes disso, o jovem Robert Francis estudou matemática na Villanova University – perto da Philadelphia. Logo, não foi formado como um terraplanista.
De todo modo, é curiosa, no mínimo, a abordagem usual da grande mídia, usando o “americano” em praticamente todas as chamadas e manchetes, como que “esquecendo” que Jorge Mario Bergoglio e todas/os nós também somos americanas/os. Uma insistência condicionada e muito provavelmente proposital no sequestro do gentílico. Isso se deu, principalmente, nos dois primeiros dias, desconsiderando-se tal como devido a sua nacionalidade escolhida e origem episcopal (peruana e chiclayana – portanto, sim, latino-americana). Fora o destaque forçado a pautas identitárias e outras ditas “polêmicas” em relação ao novo Papa, como se a geopolítica não fosse questão de muito maior relevância para o pontificado e o mundo.
Leão XIV é o bispo de Roma – ou seja, o Papa da Igreja Católica – vindo da desconhecida Chiclayo, e admitamos que a maioria de nós sequer sabia de sua existência. Foi para lá, no norte do Peru, que Francisco o nomeou bispo, onde atuou com os pés nas periferias, incluindo o recurso à garupa do cavalo em lugares inacessíveis e às botas sete léguas nas águas de enchentes, e onde demonstrou proximidade humana e divina – aquela do verdadeiro Evangelho – com o povo chiclayano e suas lutas diárias.
Leão XIV é, sim, um padre formado em Chicago, tendo prestado votos na ordem agostianiana em 1981, e sido ordenado presbítero em 1982. Logo, também é um padre diretamente influenciado por Puebla, a conferência dos bispos-latino-americanos em 1979, e consequentemente por Medellin, em 1968. As missões que abraçou o confirmam claramente. Um padre formado na teologia pós-conciliar e na efervescência da teologia latino-americana, e que ouviu o chamado para atuar nessa periferia do mundo. Desde 1985, viveu no Peru (Chulucanas, Trujillo, Chiclayo), de onde saiu tão somente quando assumiu funções de diretor (de vocações e de missões) e de prior (provincial e geral) de sua ordem, e mais adiante a convite de Francisco para ajudá-lo na Cúria Romana. A propósito, foi ordenado bispo no dia de Nossa Senhora de Guadalupe (padroeira da América Latina), foi vice-presidente da conferência episcopal peruana, e falou em espanhol desde o balcão da Basílica de São Pedro para o seu povo na diocese de Chiclayo.
Portanto, precisamos sempre ir além do que é dito, e perceber os sinais que a história nos aponta, bem como, claro, reparar nos fatos em si. Um padre agostiniano formado em boa teologia, de coração evidentemente latino, tanto que escolhe ser cidadão peruano, e um bispo encarnado e pastoralmente atento às necessidades reais do povo de sua diocese. Mais que isso, um bispo a quem Francisco não somente nomeou, mas fez cardeal para uma função na qual passou a ter contato direto com os bispos do mundo inteiro. Em outras palavras, a melhor política, como cunhou o mesmo Francisco na Encíclica Fratelli tutti, também se faz assim. Francisco foi genial nesse sentido, seguindo princípios como o todo é maior que a soma das partes, a realidade importa mais que as ideias etc., e abriu caminhos para o seu sucessor.
No mais, é também evidente que a escolha do seu nome, explicada por ele mesmo neste último sábado (dia 10), faz referência ao antecessor de mesmo nome, Leão XIII, e aponta rumos do programa do seu pontificado. Como já bastante mencionado em vários meios, Leão XIII inaugurou a chamada doutrina social moderna da Igreja em 1891 com a publicação da Encíclica Rerum novarum sobre as coisas novas trazidas pelo capitalismo industrial, e com atenção central à condição dos trabalhadores da época, ainda que também com grande preocupação com o pensamento marxista e o manifesto comunista. João XXIII deu grande impulso a essa doutrina com suas encíclicas sobre o papel da Igreja e sobre a paz na terra, e principalmente com a convocação do Concílio Vaticano II, do qual Francisco e Leão XIV são plenos receptores e propulsores, assim como o são da mesma doutrina social.
Logo, ainda que estejamos diante de uma obra totalmente em aberto, e sabendo que todas as instituições na história são instituições em disputa, pode-se afirmar que temos sinais suficientes de que o pontificado que ora se inicia avançará o legado de Francisco, e será fortemente marcado pela preocupação real e concreta com os sinais dos tempos atuais, principalmente em relações às questões sociais. Por exemplo, ele mesmo já fez referência à nova “revolução industrial” que surge com o avanço das big techs e da inteligência artificial. Não é à toa que a extrema-direita já esbraveja nas redes sociais contra “mais um comunista” na liderança da Igreja Católica – mas, como diria o Velho Brizola, eles estão aí para nos enganar, de modo que é preciso fazer o bom combate da verdadeira fé que São Paulo muito bem destacou.
Numa nota pessoal, e que outros colegas também têm feito, também há referência, no nome escolhido, à figura de Leão, o frei amigo próximo de São Francisco em sua “reforma eclesial interna” na belíssima Assis, cidadela erguida há séculos no Monte Subásio, bem no coração da Umbria italiana. Frei Leão foi amigo, caminhante, confidente, preservador do legado do Poverello de Assis, de modo que a comparação com Leão XIV e o simbolismo muito prático da amizade sincera, caminho conjunto, confiança mútua e preservação do legado do Francisco de Roma são inevitáveis.
Diante da praça lotada e de braços abertos, como ele mesmo disse, Leão XIV fez destaques reforçados à paz, à justiça, à humildade, ao diálogo, ao encontro e ao amor incondicional a todas e todos como regra civilizacional básica. Pediu uma Igreja missionária, que sai de si mesma e quer estar no mundo, e também sinodal, que caminha com a participação de todas e todos. E falou em seguimento verdadeiro do Jesus histórico, o qual a fé cristã também chama de Cristo, o Deus feito humano, o plenamente humano que é divino. Na lógica de Paulo Freire, entendendo que é da imanência histórica que sempre partimos enquanto humanos, mas que, sem dicotomia, é para a transcendência – incluindo aquela na direção do verdadeiramente divino – que também existimos enquanto humanos, há muitas razões para esperançar.
Portanto, esperançemos com a chegada de Leão XIV. Não como ato de espera, mas de esperança, que é proativa. E não por ele, mas com ele. Independentemente de como cremos, importa caminharmos, nessa esperança, ao lado daqueles que atuam na direção de um outro mundo possível, e o novo Papa assim se apresenta.
PS: recomendo os artigos do jornalista Sergio Rubin e do teólogo e professor Cesar Kuzma também sobre a chegada do novo Papa.
[1] Para uma breve retrospectiva sobre Francisco (numa espécie de despedida em versos) e esse sopro de ar fresco mediado pelo “Papa que veio do fim do mundo”, segue artigo publicado pelo IHU (link).
* Por Klaus da Silva Raupp, advogado no Brasil formado pela UFSC, mestre em teologia sistemática pela PUCRS, professor na área (com ênfase na doutrina social da Igreja), e candidato ao doutoramento em teologia e educação pela universidade jesuíta Boston College (com pesquisa sobre catolicismo, justiça econômica, pedagogia crítica e currículo sócio-reconstrucionista)