Ao longo da história conturbada do Terceiro Mundo – desde as lutas dos povos originários em defesa de suas terras e culturas, passando pela resistência anticolonial na África e na Ásia até os movimentos contemporâneos contra ditaduras e opressão –, o conceito de “resistência” sempre ocupou um lugar sagrado na consciência coletiva das nações oprimidas.
Esse espírito de luta manifesta-se na força das tradições culturais preservadas sob a colonização, na resiliência de comunidades marginalizadas em busca de justiça e nos movimentos sociais transnacionais que desafiam estruturas de dominação. É essa mesma perseverança que nos permite compreender a história da Palestina, solidarizando-nos com um povo que resiste à ocupação e reivindica sua autodeterminação.
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Atualmente, a luta palestina na Faixa de Gaza expõe ao mundo a realidade de uma nação sitiada que enfrenta décadas de colonização. Assim como em contextos do Sul Global – onde povos mantiveram viva sua identidade apesar de genocídios, apartheid e exploração –, a Palestina preserva sua cultura e dignidade mesmo sob cerco, utilizando a resistência como linguagem política e existencial.
A queda do exército invencível
Depois do fracasso de Oslo, a resistência palestina demonstrou que a única linguagem compreendida pelo ocupante israelense é a força organizada. Assim como outros povos colonizados que desafiaram impérios aparentemente invencíveis, Gaza provou que a determinação coletiva pode derrubar projetos de dominação, mesmo quando apoiados por potências globais.
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Este acordo de cessar-fogo em Gaza é um exemplo raro na história, pois raramente um poder que se autointitula força regional dominante, com apoio de grandes potências, é obrigado a aceitar as condições de um adversário que, aos olhos de muitos, parece fraco, faminto, exausto e sitiado.
No fim, os israelenses se viram forçados a cumprir a primeira fase do acordo de cessar-fogo, que inclui:
- Libertação de cerca de 2.000 prisioneiros palestinos das prisões israelenses, entre os quais 296 condenados a prisão perpétua.
- Retirada das forças de ocupação da Faixa de Gaza e retorno dos deslocados internos às suas casas.
- Reabertura das passagens fronteiriças, com a entrada diária de aproximadamente 600 caminhões de suprimentos.
- Início dos esforços de reconstrução, enquanto o Hamas mantém suas armas.
- Tudo isso em troca da libertação de apenas 33 prisioneiros israelenses em poder da resistência.
Esse acordo, claramente, gerou um sentimento de arrependimento, amargura e sensação de derrota entre os círculos políticos, militares e de segurança do regime sionista.
Netanyahu é o símbolo do sionismo em crise
A arrogância de Benjamin Netanyahu e sua negação da realidade podem levar a uma derrocada ainda maior do projeto sionista. Autoridades militares e de segurança, além de forças de oposição interna, o aconselharam a buscar uma solução política que, de acordo com pesquisas, é apoiada pela maioria dos colonos israelenses.
Apesar disso, o acordo ainda é “frágil”, pois os principais aliados do gabinete de Netanyahu não aceitam essa derrota e acreditam na necessidade de retomar a guerra para tentar eliminar a resistência. Para eles, aceitar as condições impostas pela resistência é o começo da contagem regressiva para o fim do projeto sionista, bem como o fim da carreira política de Netanyahu.
Essa fragilidade transparece nas declarações de Netanyahu, que continua ameaçando reprimir o Hamas e impedir seu controle sobre Gaza, mesmo após a implementação da primeira fase do acordo – como indicam promessas verbais feitas por ele ao ministro das Finanças, Bezalel Smotrich. A saída de Itamar Ben-Gvir e seu partido do gabinete de Netanyahu e a descrição do acordo como “catastrófico” e uma “rendição ao Hamas” evidenciam o estado de revolta que assola a ala ultradireitista religiosa.
Apesar do clima de decepção e da percepção de metas não alcançadas, pesquisas indicam que a maioria dos israelenses concorda em manter o acordo. Cerca de 60% são favoráveis à continuidade das negociações e à implementação da segunda fase, enquanto 61% dizem não acreditar nas promessas de Netanyahu de acabar com o poder e o governo do Hamas na Faixa de Gaza.
Haim Ramon, ex-ministro da Justiça do regime sionista, escreveu um artigo no jornal Maariv comentando o discurso de renúncia de Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior do exército israelense, em que este último admitiu que “os objetivos da guerra não foram plenamente alcançados e o exército de Israel continuará lutando para eliminar o Hamas”. Ramon afirma que, após 15 meses de conflito, tais objetivos permaneceram inalcançados porque o plano militar apresentado por Halevi não tinha chance real de sucesso. O resultado foi que o Hamas manteve suas capacidades militares.
Em seu discurso, Halevi reconheceu que o exército israelense falhou em sua missão de defender Israel e que o governo pagou um preço altíssimo por isso. Ele assumiu toda a responsabilidade pelo fracasso de 7 de outubro de 2023, classificando-o como um desastre que o persegue a cada dia e a cada hora.
Para Ramon, há três responsáveis por esse fracasso: além de Halevi, o ministro da Defesa, Yoav Gallant (que já havia renunciado), e o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. Ramon acrescenta que o acordo de troca de prisioneiros constitui uma derrota completa, mas foi inevitável para garantir a devolução dos prisioneiros israelenses, ao custo de manter o Hamas no controle de Gaza. Ao final de seu artigo, ele pede a renúncia de Netanyahu, a quem considera “o único responsável pelo massacre e pelo fracasso na condução da guerra”.
Nesse contexto, um oficial do exército israelense declarou que é preciso recrutar cerca de 10 mil novos militares para aumentar as capacidades do exército e compensar a falta de pessoal. Ben Khalifa, chefe do setor de pessoal do exército de Israel, reforçou isso durante uma sessão no Comitê de Relações Exteriores e Defesa do Knesset, destacando a necessidade de engajamento de judeus haredim, que se recusam a lutar no IDF.
Após o cessar-fogo, intensificaram-se discussões entre comandantes militares, políticos e legisladores sobre a real situação do exército, inclusive sob a acusação de que Netanyahu teria ocultado o número verdadeiro de soldados mortos e feridos na guerra de Gaza.
Foi uma vitória do Hamas
O Hamas e as forças da resistência palestina triunfaram na batalha de objetivos, frustrando os objetivos da ocupação de acabar com a resistência, além de impedir a colonização definitiva da Faixa de Gaza.
O plano de deslocar a população no norte de Gaza – parte de um projeto que envolvia o reassentamento de colonos sionistas – foi frustrado.
Os palestinos também abalaram os planos de normalização das relações de Israel com alguns regimes árabes, simbolizando um revés considerável para o projeto sionista.
Mas o futuro é incerto
Contudo, o Hamas enfrenta desafios na fase posterior à implementação do primeiro estágio do acordo. O principal é a administração da Faixa de Gaza, considerando que a Autoridade Palestina, com sede em Ramallah, insiste em assumir o controle de Gaza, o que pode levar a um confronto com o Hamas e outras forças de resistência.
Se a Autoridade Palestina decidir cumprir seus compromissos com a ocupação israelense – impedindo o Hamas e outras resistências de reforçar seu arsenal –, terá de bloquear qualquer possibilidade de eleições livres e justas, pois sabe que estes grupos poderiam sair vitoriosos. Ao mesmo tempo, Israel, os Estados Unidos, países europeus e alguns países árabes buscam impedir uma possível retomada do poder do Hamas em Gaza ou limitar sua participação na administração local, seja direta ou indiretamente.
Embora o Hamas não se oponha a um consenso nacional para a gestão de Gaza, sem necessariamente estar na linha de frente do poder, a Autoridade Palestina almeja desarmar a resistência e marginalizar o Hamas politicamente, concretizando, assim, o que Israel não conseguiu atingir ao longo de anos de guerra e bloqueio.
Além disso, Israel, os EUA e aliados regionais, com apoio da Autoridade Palestina, podem continuar utilizando o bloqueio e a reconstrução de Gaza como instrumentos de pressão ou chantagem contra o Hamas e as demais forças de resistência. Dada a situação extrema do povo de Gaza e sabendo que aproximadamente 90% das casas e infraestruturas foram destruídas, a necessidade de assistência é urgente. Estudos e estimativas internacionais apontam que o custo de reconstrução supera 80 bilhões de dólares e que só a remoção dos escombros exigiria mais de 1,3 milhão de caminhões.
É a luta contra o sistema imperialista
O que ocorre na Palestina reflete uma luta compartilhada por povos do Sul Global: a defesa intransigente da terra e da autonomia contra a violência colonial. Dos movimentos de libertação africanos que derrotaram regimes opressores às rebeliões indígenas nas Américas contra a usurpação de territórios, a história ensina que a resistência é a semente da soberania.
Para as nações do Terceiro Mundo, a solidariedade com a Palestina não é apenas um gesto político, mas um reconhecimento de que a opressão colonial possui mecanismos universais – e a resistência, por sua vez, é uma resposta igualmente global. A vitória simbólica de Gaza contra um exército tecnologicamente superior reverbera como um lembrete: nenhum cerco é eterno, e nenhum povo aceita passivamente a subjugação.
Assim, a luta palestina transcende fronteiras, conectando-se às narrativas de todos os povos que, do Saara Ocidental à Caxemira, do Congo à América Latina, desafiam a lógica do dominador. A mensagem de Gaza é clara: em um mundo marcado por desigualdades históricas, a resistência não é apenas uma escolha, mas um direito inalienável dos oprimidos.
*Faraz Sabahi é graduado em estudos avançados em ciências estratégicas - produtor da Rádio e Televisão do Irã, produzindo mais de 500 episódios de programas nas áreas política, social e cultural, além de membro do Centro de Análise Doutrinária Yaghin.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.