A expansão do Restaurante Universitário da UERJ Maracanã aconteceu no mesmo dia em que alguns estudantes tomaram o plenário do Conselho Universitário e, mais tarde, trancaram a Universidade. Iniciada há quase um mês, a revolta estudantil pelos auxílios parece ter alcançado um novo degrau, impedindo a realização de aulas e atividades acadêmicas e comunitárias no Maracanã. Em São Gonçalo e Duque de Caxias as ocupações tomaram forma própria, em função de demandas comunitárias locais; a ruptura não foi sentida como gesto disruptivo, mas como reação a demandas estruturais históricas por mais equipamentos de Assistência Estudantil. Nesses territórios, prevaleceu a reivindicação de uma condição periférica capaz de abarcar não apenas estudantes, mas toda a comunidade. Mas, afinal, o que está acontecendo na UERJ?
Estamos em uma crise, cujo pano de fundo é uma mudança de rota na concepção de Assistência Estudantil: de uma lógica de transferência direta de renda baseada no pagamento de auxilios para outra que aposta em equipamentos estruturais, capazes de associar assistência estudantil aos impactos no ensino e no processo de formação universitária mais ampla.
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Expansão. O Restaurante Universitário é o equipamento que melhor sintetiza a concepção de Assistência Estudantil que sinaliza para o novo. Ele representa muito mais do que um espaço para realização de refeições. Proporciona alimentação de qualidade a partir de um Restaurante Escola, sob a supervisão do Instituto de Nutrição e rigoroso controle de qualidade. Ali o estudante se alimenta e aprende a comer melhor. O RU garante a presença do estudante na Universidade, o que se tornou um desafio no contexto pós-pandemia de naturalização do ensino no ambiente digital. O espaço do RU possibilita maior frequência nas aulas e no ambiente universitário em toda a sua potência – a formação em sentido pleno. O estudante pode acessar bibliotecas, exposições de arte, espaços alternativos de cultura, praticar esportes, construir laços de pertencimento com o local. Dentro da Universidade, onde ele se alimenta, o estudante constrói uma vida universitária, encontrando na UERJ um espaço proteção e acolhimento – algo que, muitas vezes, não possui em casa. Por isso que, paralelamente à expansão do RU Maracanã, a UERJ iniciou as obras em São Gonçalo e Duque de Caxias para, daí em diante, garantir o acesso à alimentação – e à formação – em todos os campi.
Crise. Em função de restrições orçamentárias, a UERJ precisou alterar critérios para pagamento de bolsas e auxílios estudantis – sobretudo aqueles criados no contexto da pandemia. Mantivemos o programa e alteramos o critério. Simplificando: nas regras anteriores, tinha acesso à uma Bolsa de Vulnerabilidade Social o estudante de ampla concorrência que, numa família de 3 pessoas, apresentava comprovação de renda menor que R$6300,00 – 1,5 salário mínimo per capita; agora, para a mesma família hipotética de 3 pessoas, a comprovação da renda deve ser de até R$2.100,00. Do ponto de vista da Reitoria, a mudança garantiu o compromisso com os mais vulnerabilizados. Encerrado o contexto de emergência sanitária que justificava maior amplitude da transferência direta de renda, resguardamos a inclusão dos mais vulnerabilizados não contemplados pela política de cotas – velho desejo da nossa comunidade universitária.
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A política de cotas segue sendo o pilar das políticas de ações afirmativas na UERJ. Isto porque os estudantes cotistas carregam a vitória de lutas históricas coletivas de movimentos sociais organizados, trazendo à tona a necessidade de aperfeiçoamento democrático. No caso da UERJ, a política de cotas produz a reserva de vagas no vestibular e o pagamento de bolsas de permanência a todos os cotistas – hoje são quase 9000. Além da bolsa, os estudantes cotistas têm assegurados o auxílio transporte, uma cota de auxílio material didático anual, acesso ao Restaurante Universitário com tarifa zero, além de auxílio alimentação em unidades da UERJ que não tem RU.
Entendemos que, para além das demandas socioeconômicas por permanência estudantil, a cota garante ao negro, ao indígena, ao quilombola e ao estudante de escola pública a ressignificação de uma existência. São critérios étnico-raciais que estão em jogo, e uma iniciativa de inclusão necessariamente desestabilizadora das relações de poder que constituem o ambiente universitário. Incorpora outros saberes, amplia o conhecimento das culturas negra, quilombola e indígena e instrumentaliza a luta antirracista. O desafio de uma expansão, neste caso, se direciona para a afirmação das cotas entre estudantes da pós-graduação e docentes, a pluralização curricular, efetivação do estatuto da igualdade racial, além do combate a todas as formas de assédio e opressão, dentre outras iniciativas.
Cenários e pontos de vista. Não cabe à Reitoria ou a dirigentes de gestão universitária moldar ou delimitar o que deve orientar a luta estudantil. Entre o equipamento e o auxílio, de imediato, os estudantes manifestaram o desejo pela manutenção dos auxílios. Quando nós anunciamos pela internet que o RU Maracanã teria tarifa zero para cotistas, eles protestaram nos comentários: queremos os auxílios! O que entendemos ser uma boa notícia não foi experimentado desta forma. Cabe ressaltar que a UERJ no Maracanã já oferta aos estudantes o almoço e o jantar – com a opção de quentinhas – e caminha para oferecer o café da manhã. Com as três refeições diárias, se completa aquilo que o Presidente Lula definiu, em seu discurso de posse em 2003, como meta síntese para o início de uma vida digna e cidadã.
Do ponto dos estudantes, o fim do auxílio alimentação para o Maracanã, no valor de 300 reais, representa o caminho para a fome. Ainda que tenhamos ressaltado o caráter provisório e emergencial deste auxílio, criado em um contexto de impossibilidade de uso do RU, os estudantes utilizam o apelo da fome como mola mestra de seu discurso político.
Neste caso, fica evidente o impasse: entendem a reorientação da política de assistência como corte de direitos adquiridos. Soma-se a isso o fato de que a Ocupação é um método amplamente aceito por setores identificados com o espectro político à esquerda na Universidade – cabe ponderar, por outro lado, que esta não é a única visão disseminada no espaço acadêmico, marcado, notadamente pela diversidade de posições ideológicas.
Não moldamos lutas, mas métodos precisam sim ser criticados. Há claro propósito de desumanização em algumas iniciativas. O uso indiscriminado e antiético de captura de imagens por aparelho celular e difusão de fakenews promove discursos de ódio, ameaça e violência. Uma câmera na mão se transforma em arma de destruição de reputações: não importa quem filmou, por que filmou ou qual o enquadramento. Só importa a vontade de produzir a confirmação de convicções prévias, naquilo que caracteriza o fenômeno da pós-verdade. Isso não torna a luta estudantil ilegítima, mas precisamos ser firmes em nossos propósitos educadores, definindo um terreno comum a partir do qual a crítica e a política possam se movimentar.
Perspectivas. O impasse está colocado. Por maiores que sejam as nossas explicações, de que estamos experimentando a passagem de uma concepção de Assistência Estudantil a outra, dos problemas éticos, políticos e pedagógicos que envolvem o fenômeno da bolsificação e da transferência direta de renda sem contrapartidas, a sensação de perda, a princípio, não parece remediada.
Recuamos. Apresentamos à comunidade propostas de mediação, considerando o funcionamento de uma regra de transição até o final de 2024. Trouxemos à cena, além dos estudantes da Ocupação, a representação estudantil das unidades. A ideia é garantir que as políticas de assistência atendam tanto às necessidades imediatas dos estudantes quanto aos objetivos de formação acadêmica e profissional de médio e longo prazo.
Eis um passo que aponta para a construção de uma nova pactuação, a ser construída gradativamente para depois da crise. Reconhecendo, sempre, as especificidades territoriais dos campus de São Gonçalo, Duque de Caxias, Rezende, Friburgo, Petrópolis e Cabo Frio – reconhecendo nessa diversidade a grandeza que distingue a UERJ.
Em um ponto, no entanto, não iremos recuar. Agora, para ter acesso aos auxílios assistenciais, o estudante da UERJ precisa cumprir compromissos acadêmicos mínimos que não existiam – como a inscrição e frequência em disciplinas, visando o êxito e a saída da Universidade. Esses indicadores precisam de discussão e aprimoramento. Assistência estudantil orientada para o ensino/aprendizagem, a pesquisa e a formação profissional. Depois da crise, um projeto de Universidade a construir. O debate está aberto, quem topa pensar nisso junto com a UERJ?
Daniel Pinha é Professor do Departamento de História e Pro Reitor de Políticas e Assistência Estudantis da UERJ