O nível de viralatismo de parcela da imprensa brasileira atingiu picos estratosféricos no início desta semana. Após a correta fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último domingo, 18, comparando a ação militar de Israel na Faixa de Gaza ao assassinato em massa de judeus por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, a grande mídia passou a exigir do presidente brasileiro uma retratação pela fala.
Em síntese, para esta parcela midiática a fala estaria equivocada por não representar uma comparação fidedigna em seus valores históricos e de dimensões numéricas. Defendem que tal postura seria “antissemita”, estimularia animosidades sobre o tema e que, portanto, deveria o presidente Lula se desculpar ao presidente israelense, ‘Bibi’ Netanyahu, como um “gesto de grandeza”, cravando a narrativa reproduzida entre programas de “debate” na TV a matérias em sites.
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Sob pressão midiática para se curvar com o supracitado pedido de desculpas, mesmo após Netanyahu ter declarado nosso presidente como "persona non grata", Lula não apenas manteve a postura, como convocou embaixador brasileiro em Tel Aviv, Frederico Meyer, para consultas e chamou o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, para um gesto de desagravo. Sobretudo depois que de o governo israelense ter constrangido Frederico Meyer num chamado ocorrido no Museu do Holocausto para que o chanceler israelense, Israel Katz, chamasse Lula de "persona non grata", em hebraico, durante coletiva de imprensa, ao seu lado. Algo descrito como um "show" e uma forma de humilhá-lo.
A desonestidade intelectual é uma praga alastrada em muitos veículos de comunicação, seja pela prostituição intelectual subserviente aos caprichos editoriais por sobrevivência profissional ou almejando promoção, seja por mera sociopatia intrínseca de alguns “analistas” ou apenas mau-caratismo típico do cinismo ultraconservador. Como for... A ética demanda separar os ‘pingos nos is’ da fala do presidente Lula. De fato, o horrendo Holocausto que vitimou seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra não tem comparação, não apenas com o genocídio presenciado hoje em Gaza, como em qualquer período passado e futuro, porque ele é único em seu contexto e simbologia.
No entanto, o holofote jogado pelo presidente não está (e basta ter o mínimo de honestidade para ver) em comparar os dois genocídios sob a mesma régua histórica, mas de apontar para as práticas e alicerces que são, sim, equiparados, pois representam um genocídio motivado por uma limpeza étnica evidente. Seria como comparar o extermínio indígena brasileiro, desde a invasão portuguesa, com o extermínio de trabalhadores rurais em conflitos por terra no Brasil, como denuncia a Comissão Pastoral da Terra (CPT); um matou milhões de indígenas, outro, milhares de camponeses, em contextos e épocas completamente distintas, mas ambos compartilham serem vítimas da ganância pela terra, por seus frutos, bem como do poder opressor avassalador com uso desproporcional da força, dentre outros pontos.
Pois bem, diversas entidades e organizações no mundo, incluindo a Organização das Nações Unidas (ONU) têm criticado a ofensiva militar israelense na Faixa de Gaza, taxando-a como genocídio, exatamente por violar os pontos contidos no artigo II da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, do qual o Brasil é signatário, dentre outros. Muito antes de 1947, quando a ONU aprovou a Resolução 181, que dividiu a Palestina em dois territórios para os judeus e árabes palestinos, sendo Jerusalém sob controle internacional, a ideia de desapropriar árabes-palestinos de suas terras para a criação de um Estado exclusivamente judeu foi “parte do projeto sionista desde o início do seu empreendimento colonizador, isto é, desde o final do século XIX”, como descreve a historiadora Arlene Clemesha em seu artigo Palestina, 1948-2008: 60 Anos de Desenraizamento e Desapropriação.
De lá para cá, milhões de palestinos foram expulsos violentamente de suas terras, de suas casas, sendo uma expulsão forçada de um grupo étnico (palestinos) para homogeneizar aquela terra com “ocupações” israelenses e, inclusive, destruindo símbolos de sua história e religião, o que também é considerado crime pela tipificação das Leis internacionais convencionadas. De acordo com a ONU, desde 1948, mais de 250.000 palestinos foram mortos por militares israelenses. Portanto, isso se trata, sim, de extermínio de um povo, sim, de limpeza étnica e, sim, comparável ao Holocausto por seu viés higienista-étnico, violência e desumanização. É sobre isso que Lula se referiu!
A história não pode ser manipulada por uma versão midiática que responde a interesses do norte. Precisamos lembrar e reafirmar as diversas resoluções da ONU que condenam o Estado de Israel e reconhecem o direito palestino ao território invadido, incluindo a Cisjordânia. Resoluções que apontam violações contra os direitos humanos como genocídio étnico e apartheid praticado pelo Sionismo. Mas, infelizmente, não vimos esta mesma grande mídia condenando (nem ao menos noticiando) ao longo dos anos estas invasões sobre o território palestino.
É evidente que a fala do presidente, como a de setores da esquerda em prol da causa palestina fazem a devida crítica contra a política de estado adotada, sistematicamente, por governos israelenses. Isso não tem absolutamente nada a ver com ataques ao povo israelense que, por sinal, majoritariamente condena o governo e o genocídio de Benjamin Netanyahu. Da mesma forma que o mundo, historicamente, condena o antissemitismo do governo nazista de Adolf Hitler e não a população alemã. Criar uma cortina de fumaça megalomaníaca para atribuir a causa palestina ao antissemitismo não é apenas uma desonestidade covarde, é psicopatia!
Num momento que observamos o enfraquecimento dos noticiários em torno do massacre em Gaza que já deixou, até o momento, mais de 30 mil mortos e 70 mil feridos, sendo maioria de crianças e mulheres, enquanto as forças militares israelenses só aumentam a ostensividade, a gravidade tem sido relativizada e as mortes têm se tornado paisagem. A naturalização da guerra parece não preocupar estes setores, mas a fala de Lula sim, esta parece escandalizar e ganha protagonismo negativo, sobretudo quando se trata de uma verdade inconveniente. Da fala, porém, podem combater a inconveniência, mas jamais ressignificarão a verdade que nela contém.
*Thiago Dhatt é assessor parlamentar e Antropólogo