Por Thiago Dhatt*
O povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama Laklanõ, em Santa Catarina, aguarda o veredito do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o julgamento da Ação Cível Originária (ACO) 1100, da qual é parte, que discute também a validade da tese do ‘Marco Temporal’ e afetará não apenas o seu destino, mas de todos os seus parentes (termo usado pelos indígenas para se referir a outros povos indígenas distintos) espalhados pelo Brasil.
Mas afinal, o que é a teoria do ‘Marco Temporal’?
De maneira objetiva, o ‘Marco Temporal’ defende que somente são consideradas terras indígenas aquelas que estavam sob a posse dos índios no dia 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada nossa Constituição Federal. Ou seja, desconsidera todo o processo de violências e expulsões sofridos pelos indígenas de suas terras sagradas. A tese é, sobretudo, defendia pelos ruralistas, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional Brasileiro. Ela também visa anistiar os crimes cometidos contra os indígenas, especialmente aqueles durante a Ditadura Militar, período em que muitas terras indígenas, consideradas originalmente como “terras públicas”, foram invadidas e griladas.
A política eugenista de embranquecimento do Brasil
Como a História sabe, entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, vigoraram em várias partes do mundo teses eugenistas. Teses que defendiam um padrão genético superior para a “raça” humana. Tais teses, consideradas científicas, à época, defendiam a ideia de que o homem branco europeu tinha o padrão da maior beleza, da melhor saúde e da maior competência civilizacional em comparação às demais “raças”, como a “amarela” (asiáticos), a “vermelha” (povos indígenas) e a negra (africana).
Por cerca de 1870, um intenso debate sobre a modernização do Brasil e a construção de sua identidade nacional ocorria entre as elites políticas e intelectuais do país. Um dos assuntos centrais que pautavam esse debate era a questão racial. Essa discussão afirmava que a miscigenação entre diferentes raças humanas no Brasil causava degeneração. Em regra, os intelectuais brasileiros assimilavam essas ideias sem qualquer contestação e questionavam apreensivos como o Brasil se desenvolveria, uma vez que o país era constituído em sua maioria por uma população não branca – negros, indígenas e mestiços, e que, portanto, o país deveria “europeizar-se” a partir da “importação” de imigrantes europeus.
As primeiras iniciativas eugenistas de colonização no século XIX buscavam, sobretudo no Sul do Brasil, a vinda de alemães. As regras de admissão de estrangeiros definiam como “imigrante ideal” o agricultor branco que emigrava em família, excluindo, por exemplo, o africano que era considerado “bárbaro” e os indígenas considerados “preguiçosos”. A partir de 1850, quando se dá a promulgação da Lei de Terras, há uma intensificação de colônias. Apesar da maioria ser constituída por alemães, havia um pequeno número de poloneses, noruegueses, suecos, suíços, irlandeses e franceses, que eram orientados a colonizar especialmente Santa Cataria e o Rio Grande do Sul.
Com a colonização europeia no sul do país, os indígenas, apelidados pejorativamente de “bugres” (pagãos), sofreram um intenso processo de extermínio. Os bugreiros, como ficaram conhecidos os indivíduos especializados em atacar e dizimar aldeias inteiras, eram contratados pelos governos imperiais das províncias do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por vezes, somente meninas indígenas eram “poupadas” e escravizadas. Os xoclengues foram retirados de suas terras tradicionais de caça há mais de um século para dar espaço aos colonos europeus.
Em Santa Catarina, os Xokleng se dividiram em três grupos: os Angying, que habitavam a Serra do Tabuleiro (nunca foram oficialmente contatados e são tidos como desaparecidos ou exterminados); os Ngrokòthi-tõ-prèy, que firmaram-se no oeste do Estado, próximo ao município de Porto União (em 1914, aqueles que rejeitaram as condições impostas por colonizadores e pelo Estado foram executados em uma enorme chacina, restando cerca de 50 indígenas, que morreram, quase todos, de doenças respiratórias decorrentes do contato com não índios); os Laklanõ que, por sua vez, firmaram-se no Vale do Itajaí, próximo ao município de Ibirama (os indígenas Xokleng que se autodenominam "Laklanõ" - "gente do sol" ou "gente ligeira" - vêm lutando para preservar sua cultura, seus rituais, seu idioma e mitologia após processos de aculturação e ataques ao seu território. O processo que será julgado no STF vem deles.
O processo
Os xoclengues somam 3.000 pessoas hoje, espalhadas em 14.156 hectares de território montanhoso. Eles reivindicam 24 mil hectares adicionais que dizem ter pertencido a eles por séculos antes da chegada dos colonos. O processo surgiu quando o governo de Santa Catarina usou a interpretação do ‘Marco Temporal’ para desalojar um grupo de xoclengues de uma reserva ambiental reocupada por eles. A Funai (Fundação Nacional do Índio) recorreu e apelou da decisão em nome dos xoclengues.
A outra teoria – Teoria do Indigenato
A Teoria do Indigenato consiste no fato de que os povos indígenas têm direito aos seus territórios tradicionalmente ocupados, independente se pré ou pós 1988. Conforme expresso no artigo 231 da Constituição Federal, não podendo haver nenhuma limitação a este direito, devendo o poder público federal demarcar e proteger todas as terras. Nesse sentido, a Constituição reconheceu expressamente aos índios "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Também, cravou os "direitos originários" dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
O Brasil também é signatário da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que garante, dentre outras coisas, a forma de organização social, cultural e territorial de cada povo. Até mesmo o Estatuto do Índio, criado em 1973, estabelece que a União deverá destinar áreas de terras à posse e ocupação pelos índios considerando os critérios culturais e históricos, conforme pratica a FUNAI.
Consequências de uma possível aprovação do ‘Marco Temporal’
Uma decisão favorável ao ‘Marco Temporal’ tende a dificultar novas demarcações, além de colocar em risco muitas demarcações já existentes e regularizadas, uma vez que diversas delas seriam contestadas por se tratar de reocupação pós 1988. Em muitos desses casos, os indígenas reclamam territórios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988. Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 245 processos de demarcação de terras ainda não concluídos. Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja Católica que atua em prol dos povos indígenas, conta 537 casos desse tipo.
Em 11 de junho, deste ano, o relator do processo sobre os Xokleng no STF, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do "marco temporal". O julgamento foi suspenso após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Agora, o processo voltou à pauta de julgamento do plenário, previsto para esta quarta-feira. Entretanto, é possível que novos pedidos de vista posterguem uma decisão.
Para variar, há no Congresso o Projeto de Lei 490/07 que, resumidamente, altera a legislação da demarcação de terras indígenas. Ele oficializa, na marra, a teste do ‘Marco Temporal’, inserindo no Estatuto do Índio. O texto ainda flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros. Também permite que terras reservadas possam ser tomadas dos indígenas se a União considerar que eles "perderam seus traços culturais". A Votação foi suspensa devido a ação da polícia contra manifestantes indígenas que resistem à aprovação do PL. Por questões óbvias e de coerência história, o PL tem leva o lobby do agronegócio e sua representação na bancada Ruralista, além do presidente Jair Bolsonaro.
Não! Nosso tratamento mais marcante com os povos indígenas não está no passado, nem nos livros de História, está acontecendo agora, hoje! No século XXI o país ainda assiste ao debate se reconhece, ou não, terras indígenas como terras indígenas ou se legitimamos o genocídio e roubo de suas terras para a manutenção de nossos etnocentrismos institucionalizados.
*Thiago Dhatt é assessor parlamentar e Antropólogo