O Banco Central divulgou recentemente as informações oficiais relativas à política fiscal do governo brasileiro. Com o boletim de dezembro de 2023, torna-se possível a consolidação dos dados de todo o exercício passado.
Os números tendem a confirmar, mais uma vez, a dominância da esfera financeira sobre todos os demais setores da atividade econômica. Esse processo de hegemonia do financismo vem de muito tempo, mas a cada novo período a situação parece se aprofundar ainda mais.
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Um dos principais problemas no debate envolvendo as políticas de austeridade fiscal diz respeito ao tratamento oferecido às despesas governamentais de natureza financeira.
A orientação de conceder um enfoque diferenciado ao pagamento de juros da dívida pública, por exemplo, tem suas origens ainda na década de 1980, quando ocorria o processo de renegociação da dívida externa de boa parte dos países do então chamado Terceiro Mundo.
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Naquele momento, com a transferência da responsabilidade da gestão do endividamento do mundo em desenvolvimento para o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e o Tesouro estadunidense, as regras passaram a compor aquilo que veio a ser conhecido como Consenso de Washington - em razão das sedes de tais instituições estarem localizadas na capital daquele país.
Uma das inovações foi justamente a recomendação para que os países endividados colocassem a austeridade fiscal como elemento central em suas estratégias de ajuste macroeconômico. E assim foi feito. As elites do capital financeiro em nossas terras, passaram a encher a boca para que os sucessivos governos cumprissem com aquilo que chamavam de “dever de casa”.
Despesa financeira não tem teto nem limite
Porém, e sempre tem um porém, o foco da ação da tecnocracia deveria ser apenas e tão somente sobre o conceito de “equilíbrio primário”. Como por primário entende-se o conjunto de despesas não-financeiras, a dedução lógica é que todo o esforço de compressão de gastos orçamentários deveria se concentrar sobre previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, saneamento, salários de servidores, investimentos etc.
Assim, no que se refere ao pagamento de juros da dívida pública não deveria existir nenhum controle, teto, contingenciamento ou qualquer outro tipo de limitação.
Afinal, como gostam de reafirmar a cada instante os “çábios” a serviço do financismo, os contratos devem ser honrados (sic). Na verdade, entenda-se aqui apenas os contratos estabelecidos com a elite do capital, uma vez que os contratos socialmente estabelecidos na Constituição, ah esses não merecem nenhum tipo de rigor quanto ao seu cumprimento.
Esta metodologia de conferir às despesas financeiras um verdadeiro e injustificável tratamento VIP foi sendo incorporada pela institucionalidade e pela legislação dos países.
No caso brasileiro, por exemplo, o espírito da austeridade foi consolidado no texto da Lei de Responsabilidade Fiscal do FHC/Malan em 2000, se manteve no teto de gastos do Temer/Meirelles em 2016 e ainda persiste nos dispositivos do Novo Arcabouço Fiscal de Lula/Haddad aprovado em 2023.
Mais do que isso, a obsessão de buscar superávit nas contas públicas a todo o custo se manteve intocável ao longo de todo esse período. E tal deformação só reforçou o viés em prol da financeirização, fenômeno que tão tristemente vem marcando nossa economia e nossa sociedade.
Em 2023 foram R$ 718 bi de juros da dívida
Pois em 2023 o governo brasileiro gastou o equivalente a R$ 718 bilhões com pagamento de juros da dívida pública. Esse valor representa um recorde na série histórica desse tipo despesa apurada pelo BC.
Em 2022, por exemplo, que já havia sido o maior valor anual até então registrado, o total foi de R$ 586 bi. Isso significa que, ao mesmo tempo em que o ministro Haddad segue insistindo no discurso em favor da austeridade fiscal dura e crua, durante o ano passado as despesas governamentais não primárias sofreram uma elevação superior a 22%.
Vale a pena ressaltar que nenhuma outra rubrica orçamentária recebeu tratamento semelhante na comparação entre os dois exercícios.
O interessante é que as alternativas apresentadas pelos representantes do financismo nos grandes meios de comunicação sempre começam pelo substantivo “gastança”. Os chamados “especialistas” sugerem que o governo corte drasticamente em programas de natureza social, mas não citam em nenhum momento o tipo de despesa que mais prejuízo provoca ao Brasil.
Aumentar os recursos para áreas como a saúde e a educação, por exemplo, apresentam um excelente retorno social e econômico. O chamado multiplicador dos gastos para esse tipo de programa é bastante positivo.
Afinal, eles geram crescimento da atividade econômica real, proporcionam a elevação do nível de emprego e, principalmente, aumentam a qualidade de vida da maioria da população, localizada na base da nossa pirâmide da desigualdade.
Ao contrário, as despesas com pagamento de juros se dirigem aos setores do topo da nossa estrutura da injustiça social e econômica. São estes grupos que se apropriam privadamente da verdadeira “gastança parasitária”, cuja existência não oferece praticamente nenhum retorno de aceleração do crescimento das atividades econômicas ou de elevação do nível de emprego.
Esse impressionante volume de dinheiro público é encaminhado diretamente para as camadas que menos necessitam justamente de ajuda do Estado. Trata-se, na verdade, de uma completa inversão de valores e de prioridades quanto ao desenho e à implementação de políticas públicas.
Superávit primário: privilégio para o financismo
O que se pode depreender de tais informações é que a aliança dos representantes do sistema financeiro com a fina flor da tecnocracia estatal cooptada pelo paradigma conservador e neoliberal termina por perpetuar a lógica de se conceder privilégios ao capital privado por meio de sequestro sistemático dos fundos públicos.
O discurso de promover a austeridade para assegurar a responsabilidade fiscal na condução da política econômica não resiste a uma análise mais detalhada.
Caso o establishment do financismo exigisse do governo o mesmo rigor no controle e no corte das despesas não primárias do que promove nas ameaças apocalípticas quando menciona a gastança irresponsável com os gastos sociais o cenário seria mais verdadeiro.
Afinal, nunca se atingirá o efetivo equilíbrio fiscal enquanto os gastos com juros da dívida pública continuarem a correr livres de qualquer controle do governo e da sociedade.
Tudo se passa como se houvesse um orçamento paralelo, semi-clandestino, onde a execução das despesas públicas da órbita financeira ocorre de forma a privilegiar ainda mais aqueles que sempre se beneficiaram da política econômica conservadora e ortodoxa.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.