A Oxfam, uma importante organização não governamental dedicada aos estudos sobre a desigualdade no mundo, divulgou recentemente um relatório a respeito do tema. A entidade aproveitou o momento da realização do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, para lançar o seu documento.
Como se sabe, o encontro da fina flor do financismo global e de seus representantes no universo dos Estados nacionais e das megacorporações representa os interesses pela manutenção do modelo neoliberal e reprodutor das desigualdades pelo mundo afora.
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A atuação da ONG se soma a um movimento amplo de denúncia da natureza elitista e conservadora dos encontros patrocinados pelo grande capital financeiro internacional. Não por acaso, o documento se intitula “Desigualdade S.A.”
O material foi preparado para se contrapor às propostas e às sugestões que costumam surgir nos encontros anuais realizados no país que é reconhecido como sendo um dos mais importantes paraísos do financismo global.
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O estudo procura reunir dados e informações, em sua maior parte vindas de fontes oficiais dos países e de organizações multilaterais, de forma a confirmar as avaliações a respeito da continuidade e do aprofundamento do processo de concentração de riqueza em escala global.
O prefácio foi assinado pelo senador democrata dos Estados Unidos, Bernie Sanders. Ele tem estimulado um debate importante a respeito de alternativas à política econômica conservadora e sempre se apresenta como opção mais à esquerda nas eleições primárias de seu partido. Escreve ele:
(...) “Os bilionários ficam mais ricos, a classe trabalhadora passa por dificuldades e os pobres vivem em desespero. Esse é o estado lamentável da economia mundial.” (...)
O documento menciona que os cinco homens mais ricos do mundo tiveram seu patrimônio aumentado em 114% entre 2020 e 2023. Assim, enquanto eles mais do que dobraram sua riqueza ao longo de quatro anos, mais de 5 bilhões de pessoas no mundo ficaram mais pobres.
Por outro lado, as informações estatísticas globais nos dizem que o topo da pirâmide – aqueles que compõem o extrato de 1% dos mais ricos – detêm o equivalente a 43% do total dos ativos financeiros existentes em escala planetária.
Além disso, o relatório aponta para concentração de poder das grandes corporações e sua relação íntima com os bilionários: dentre as 50 maiores empresas de capital aberto do mundo, os bilionários são os principais acionistas ou CEOs de 34% delas, com uma capitalização de mercado total de 13,3 trilhões de dólares.
Desigualdade cada vez maior
O texto aponta o crescimento do poder dos oligopólios como um dos fatores de elevação das desigualdades de todas as ordens. Assim, os principais aspectos de tais consequências negativas da ação das megaempresas seriam:
- promover a recompensa aos super-ricos e não aos trabalhadores
- evitar o pagamento de impostos
- incentivar a privatização dos serviços públicos
- contribuir para o colapso climático
A tendência à concentração e à oligopolização provoca distorções tão graves a ponto de que os grandes grupos empresarias possuem maior relevância econômica do que a maior parte dos Estados nacionais. Assim, por exemplo, as cinco maiores corporações do mundo combinadas têm um valor maior do que todos os PIBs dos países da África e da América Latina e Caribe somados.
O documento apresenta três medidas para que se possa estabelecer mecanismos de controle sobre o poder das grandes empresas. Seriam elas:
- revitalizar o Estado
- regular as grandes empresas
- reinventar os negócios
Aqui são apresentadas ideias como o fortalecimento da presença pública na oferta de bens e serviços, bem como nos setores propensos à monopolização. Além disso, o texto sugere ações para romper o poder dos monopólios privados e para promover a liberação das patentes.
Quanto à regressividade das políticas tributárias praticadas pela maior parte dos países, o texto menciona especialmente a necessidade de uma concertação internacional a esse respeito:
(...) “Elevar radicalmente os impostos sobre grandes empresas e indivíduos ricos. Isso inclui tributos permanentes sobre riqueza e lucros excessivos. O G20, atualmente sob a liderança do Brasil, deve defender um novo acordo internacional para aumentar os impostos sobre a renda e o patrimônio dos indivíduos mais ricos do mundo.” (...)
Bilionários e grandes corporações no poder
O relatório identifica alternativas para que a sejam adotadas medidas de redução das desigualdades em todo o mundo. Ao observar a concentração de renda e patrimônio no topo das estruturas sociais, a Oxfam aponta para possibilidades que promovam a redistribuição em favor dos mais necessitados. É ocaso do apresentado no parágrafo transcrito abaixo:
(...) “ a Oxfam estima que, se o montante que as empresas gastaram em dividendos e recompras de ações para os 10% mais ricos em 2022 fosse redistribuído aos 40% mais pobres em termos de renda, a desigualdade global medida pelo índice Palma poderia diminuir em 21,5% - o equivalente à queda real observada nesse índice ao longo de 41 anos. Além disso, metade do valor pago aos 10% mais ricos em 2022 já poderia acabar com a pobreza global e 1,6% dos pagamentos já conseguiria eliminar a pobreza extrema. ” (...)
A exemplo do escandaloso benefício tributário que isenta os ganhos de lucros e dividendos aqui no Brasil desde 1995, a entidade também chama a atenção para os mecanismos de apropriação dos ganhos das grandes corporações pelos seus acionistas e proprietários. Quando se encara o problema em escala planetária, percebe-se que:
(...) “para cada US$ 100 de lucro gerado pelas 96 principais empresas entre julho de 2022 e junho de 2023, US$ 82 voltaram a seus acionistas na forma de recompra de ações e dividendos” (...)
O encontro de Davos deste ano não deverá contar com a presença de chefes de Estado de peso, a exemplo de Joe Biden dos Estados Unidos, Xi Jinping da China, Olaf Scholz da Alemanha, Rishi Sunak da Inglaterra, Vladimir Putin da Rússia, Fumio Kishida do Japão ou Narendra Modi da Índia.
Talvez estas ausências estejam na base da decisão do presidente Lula de não comparecer o Fórum. Esta será segunda vez consecutiva em que ele não vai à Suíça, ao contrário do que fazia durante os anos de seus dois primeiros mandatos.
No entanto, apesar de tais desfalques, o encontro de Davos ainda será repercutido por boa parte das elites dos países que ainda se orientam pela bússola dos dirigentes do financismo global.
Oportunidade para mudança
Exatamente por isso é que iniciativas como essa da Oxfam se constituem em importantes instrumentos para se combater a narrativa conservadora e para denunciar a falácia dos arranjos mantenedores da desigualdade e da injustiça no planeta.
Afinal, a situação está em tal nível de gravidade que até mesmo setores localizados das classes dominantes de várias partes do mundo começam a se mobilizar para oferecer algum grau de contribuição para a busca de soluções.
Esse é o caso, por exemplo, dos “Milionários Patrióticos”, uma associação de empresários estadunidenses que lançou uma campanha para que o governo daquele país passe a tributá-los de forma mais efetiva. Essa é o mote do movimento “Tax us !”. Eles também levaram suas propostas para os últimos encontros em Davos.
Além disso, é necessário que o espaço do campo progressista volte a ser ocupado também em escala global. As iniciativas como o Fórum Social Mundial e o movimento pela tributação das transações financeiras internacionais (ATTAC) precisam ser fortalecidas e recuperadas de forma ampla e unificada.
A conjuntura exige que sejam apresentadas propostas alternativas ao financismo conservador global, para mostrar que um outro mundo ainda é possível e urgente.
A partir da crise econômico-financeira de 2008/9 e depois da experiência da crise mais recente do Covid o sistema ainda não conseguiu encontrar uma solução que unifique as diferentes facções do capital pelo mundo afora.
A falência do paradigma neoliberal, a perda da hegemonia norte americana e as ameaças provocadas pelo aprofundamento da crise ambiental abrem o espaço para um novo modelo.
Cabe às forças efetivamente preocupadas com a redução das desigualdades de toda ordem a apresentação de alternativas.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum