Como era de se esperar, boa parte da cobertura dos meios de comunicações ao longo do mês de dezembro se dedica a avaliar e analisar o primeiro ano do terceiro mandato de Lula na Presidência da República.
Os balanços tendem a acompanhar as orientações políticas e ideológicas dos espaços em que são publicados. Assim, a maior parte da grande imprensa procura exaltar as qualidades do ministro da Fazenda, que seria o principal responsável pelas boas notícias apresentadas pelo governo durante 2023.
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Por outro lado, são inevitáveis as constatações da importância política da derrota das tentativas golpistas de 8 de janeiro, com o reconhecimento da imprescindível capacidade de negociação de Lula, com a formação de uma ampla frente em defesa da democracia e dos valores republicanos.
A movimentação terrorista que se manifestou com a ocupação e a destruição de símbolos fundamentais de nosso país, como as sedes dos Três Poderes em Brasília, foi vencida e uma parte dos envolvidos estão sendo processados pelo Poder Judiciário.
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Sob a mensagem de “o Brasil voltou”, o início do governo revelou a tentativa de recuperação de políticas públicas relevantes, aquelas que tinham sido objeto de desmonte justamente durante o quadriênio em que o genocida havia ocupado o Palácio do Planalto.
As imagens marcantes e emocionantes da cerimônia de posse expressavam o desejo de uma Nação tolerante, que reconhece suas deficiências e carências no tratamento da diversidade e das minorias. Ou seja, um país que apostava na força da Presidência da República para recuperar os quatro anos de retrocesso e de atraso político e institucional.
A austeridade em Lula 3.0
A PEC da Transição, promulgada ainda antes da posse no final de 2022, assegurou recursos orçamentários para que em 2023 fosse possível a implementação de um mínimo de programas apresentados por Lula durante a campanha eleitoral.
Apesar de não ter sido incorporada no texto a simples revogação do teto de gastos, a medida foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional nº 126 e permitiu uma ampliação do Orçamento preparado ainda pela equipe de Paulo Guedes.
Assim, foram disponibilizados recursos para promover o retorno da política de reajuste real do salário mínimo, para a extensão do Bolsa Família, para de reajustes para os servidores públicos e outros programas de políticas públicas voltadas à maioria da população.
No entanto, já se foi um ano de governo. E a euforia demonstrada pela nata do financismo para com a política levada a cabo pelo comando da economia resume bem os indícios de qualquer balanço honesto a ser efetuado pelo campo progressista.
Na verdade, a principal lacuna e os maiores equívocos do governo são transfigurados pela grande imprensa em virtudes e acertos. Se alguém buscar uma síntese deste quadro contraditório poderá encontrá-la no uníssono demonstrado pelas elites do país com a suposta seriedade com que Haddad tem elaborado e implementado a política de austeridade fiscal.
O primeiro ano se encerra e ainda não se vislumbram as marcas daquilo que deveria ser a cara do terceiro quadriênio de Lula. Na área da economia, os números relativos ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) devem-se, em grande medida, aos efeitos das medidas deixadas pelas despesas públicas que se originaram no desespero eleitoral de Bolsonaro no segundo semestre do ano passado e pelas provisões orçamentárias negociadas durante a transição entre novembro e dezembro de 2022.
Para além das intenções e das declarações dos integrantes do novo governo, não existem grandes decisões estruturantes da política econômica. Este é um fator que preocupa muito, uma vez que Lula havia dito que seu só havia aceito concorrer outra vez para fazer mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos e que seu desejo seria realizar 40 anos em 4.
Financismo aplaude Haddad
Porém, segundo a narrativa das elites da Faria Lima, as grandes realizações de Haddad resumem-se na elaboração e na aprovação do Novo Arcabouço Fiscal. Ou seja, uma proposta que o próprio ministro havia incluído malandramente na PEC da Transição, com o intuito de mostrar que a sua gestão à frente da economia estaria bem de acordo com os cânones do neoliberalismo e do conservadorismo financista.
A elaboração da nova regra de austeridade foi feita de costas para a sociedade civil e ignorando as sugestões de entidades do campo progressista e democrático. Os únicos interlocutores de Haddad para este assunto foram o presidente do Banco Central (BC) indicado por Guedes/Bolsonaro e um punhado de dirigentes da banca privada.
Levando em conta o espírito da Lei Complementar nº 200 que ele mesmo redigiu em nome do governo, Haddad preparou as orientações para 2024 na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). E ali introduziu um dispositivo mais do que austericida: estabeleceu o compromisso de Lula com o equilíbrio fiscal primário para 2024.
Uma loucura! Isso significa que o governo vai se empenhar para que o total das despesas não-financeiras seja equivalente às receitas da União.
Ora, saindo de um ano em que o déficit primário está sendo estimado pelo próprio governo em mais de R$ 203 bilhões (quase 2% do PIB), a busca por “zerar o déficit” ao longo dos próximos meses será concretizada como um verdadeiro cavalo de pau no ritmo de crescimento das atividades econômicas de uma forma geral.
Caso nada seja feito por Lula para alterar o rumo da nau estagnacionista, não haverá mais instrumentos à disposição do governo ao longo de 2024 para avançar na direção das mudanças tão necessárias no país.
Na verdade, o processo de votação da Lei Orçamentária Anual (LOA) para o ano que vem oferece um pouco de luz para analisarmos as dificuldades a serem enfrentadas durante o ano que vem. As forças políticas majoritárias no Congresso Nacional incorporaram no texto o discurso de austeridade apresentado por Haddad, mas não se dispuseram a oferecer sua parcela de sacrifício para que essa meta seja alcançada.
Já que o governo insistia na busca mítica do zero no equilíbrio fiscal primário, a solução final dos congressistas foi a de restringir as despesas nas áreas sociais e estratégicas para qualquer projeto de retomada do desenvolvimento, ao mesmo tempo em que aumentavam os limites para as despesas com emendas parlamentares e para os fundos partidário e eleitoral.
Lula precisa mudar a política econômica
No entanto, por mais influenciados que estejam pela agenda da austeridade imposta pelo sistema financeiro, os agentes políticos de quase todos os matizes tendem a orientar suas decisões pela lógica da sobrevivência e da ampliação de seu próprio espaço político. Assim, é pouco provável que assistam de forma passiva à redução das rubricas orçamentárias em um ano eleitoral.
O sistema político em seu conjunto se movimenta bastante sempre que ocorre o pleito municipal. No ano que vem, estarão em disputa mais de 5.570 cargos de prefeito e as cadeiras nas respectivas câmaras de vereadores. Para obter bons resultados nessa tarefa envolvem-se deputados estaduais, governadores, deputados federais, senadores e o próprio Presidente da República.
A grande maioria dos analistas políticos e dos próprios envolvidos já deram sinais recorrentes de que a meta de zerar o déficit é quase impossível de ser cumprida. Assim, muito provavelmente o governo deverá solicitar uma emenda ao Congresso ao longo do primeiro semestre para apresentar um déficit primário, sob pena de incorrer em crime de responsabilidade.
Imaginemos só qual será o custo político e orçamentário de tal reconhecimento tardio de algo que é quase um consenso atualmente. Na verdade, Haddad pavimentou uma armadilha para Lula logo ali na frente.
Caso haja uma continuidade na orientação neoliberal e austericida da equipe econômica, a percepção de melhoria nas condições de vida da maioria da população não será alcançada tão rapidamente como deveria. As pesquisas de opinião continuam a refletir um País ainda dividido.
A sensação de avanço exige uma reversão completa na política fiscal, com a liberação de espaço para a realização de despesas públicas no campo da implementação das políticas sociais mais sensíveis, bem como na recuperação robusta de investimentos públicos nos mais variados setores em que a presença do Estado se faz necessária.
Mas para ter licença para trilhar esse caminho, o governo deverá promover alteração nas regras do novo arcabouço fiscal e obter uma autorização congressual para fechar 2024 com um déficit nas contas primárias. Esse é o caminho seguro para que Lula consiga promover as realizações tão aguardadas por todos que colaboraram para seu retorno à chefia do governo.
Permitir a continuidade da política econômica do financismo e da austeridade é frustrar o eleitorado e abrir o caminho para o retorno da extrema direita. Lula ainda tem um triênio pela frente. Mas cada dia que passa sem novidades no front da retomada da orientação desenvolvimentista e da recuperação do protagonismo do Estado é um ponto perdido na contagem regressiva dos próximos pleitos.
Fala-se muito em eventual recomposição ministerial no começo do ano. Mais do que uma dança de cadeiras e alguns arranjos em nomes da equipe, Lula precisa dar o pontapé inicial para consolidar seu projeto para os anos restantes: 2024 a 2026. E isso significa uma mudança substantiva na orientação da política econômica de seu governo.
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum