AUSTERIDADE FISCAL

A insistência pelo 'austericídio' - Por Paulo Kliass

Artigo do economista e especialista em políticas públicas e gestão governamental do governo federal avalia que os responsáveis pela área econômica do Governo Lula 3 habitam espaços distantes do Brasil

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Ao que tudo parece indicar, os responsáveis pela área econômica do Governo Lula 3.0 continuam habitando espaços muito distantes do país chamado Brasil. Mais do que isso, seu comportamento é típico de gente que passou décadas em alguma ilha perdida no oceano, sem ter conseguido manter contato com as novidades incorporadas pelo avanço civilizatório ocorrido durante o isolamento.

A se levar em conta as declarações que têm sido veiculadas por ocupantes de cargos de segundo escalão dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, as próximas decisões do governo para a política fiscal são bastante preocupantes.

Os primeiros passos rumo ao abismo começaram a ser dados ainda antes da posse do novo governo. Logo que ficou confirmada derrota de Bolsonaro no pleito de outubro do ano passado, o futuro Ministro da Fazenda começou a articular a chamada PEC da Transição.

Com o argumento razoável de que a nova equipe precisaria de um orçamento compatível com os programas apresentados à sociedade na campanha eleitoral, Haddad preparou a alteração que foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional 126. No entanto, o documento não promoveu a necessária simples revogação do teto de gastos.

Pelo texto aprovado, o teto só deixaria de ter validade no momento em que o Congresso Nacional aprovasse uma lei complementar estabelecendo um novo arcabouço fiscal.

Assim, esse foi o gatilho para a aprovação da Lei Complementar 200/23, que manteve as características essenciais da austeridade fiscal, porém apresentando uma roupagem um pouco mais flexível do que a rigidez absoluta dos 20 anos de congelamento de despesas previsto nas regras do teto de gastos.

Com o intuito de recolher sugestões para a elaboração do projeto de substituição do instrumento da austeridade máxima, o principal responsável pela política econômica conversou apenas com o bolsonarista ocupando a presidência do Banco Central (BC) e com alguns dirigentes de instituições financeiras privadas.

O resultado foi um dispositivo que manteve o espírito ortodoxo da austeridade fiscal, com mecanismos que apontam para necessidade de redução do Estado e para a transferência de políticas públicas para o setor privado.

Haddad e a inexplicável saga da austeridade

Para completar o quadro da tragédia anunciada, Haddad decidiu que o governo deveria se comprometer com uma meta de equilíbrio fiscal primário para o ano que vem. Considerando que o resultado das contas governamentais para 2023 deve encerrar o ano com um déficit primário superior a R$ 200 bilhões, há um enorme risco em se promover esse verdadeiro cavalo de pau na política fiscal na virada para 2024.

O ministro da Fazenda convenceu o presidente da República a respeito de tal estratégia. Assim, o Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2024 encaminhado ao Congresso Nacional pelo Executivo conta com um artigo que pode representar uma grave armadilha para o governo durante a execução orçamentária ao longo do próximo ano.

O dispositivo revela o incompreensível desejo de manter a austeridade absoluta em um exercício fiscal que aponta para necessidade de elevação de despesas públicas e dos investimentos do Estado.

(...) “Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2024 e a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a meta de resultado primário de R$ 0,00 (zero real) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV a esta Lei.” (...) [GN]

Ao apontar para o desejo de inviabilizar a realização de gastos fundamentais para atender às demandas tão características de um ano em que serão realizadas eleições em cada um dos 5.571 municípios do País, o Ministro da Fazenda apenas procrastina as dificuldades políticas para obter algum grau de flexibilização na execução do orçamento federal em 2024.

Na verdade, existe uma espécie de consenso entre os principais agentes políticos e econômicos quanto ao irrealismo da meta. A insistência de Haddad com a tese se aproxima de uma obstinação pela condução austericida da política econômica. Afinal, não existe nenhum argumento no campo da racionalidade para justificar a perseguição de tal objetivo.

Riscos elevados para saúde e educação

O problema é que a manutenção de tal dispositivo na LDO não resolve apenas os problemas da consciência e do bom mocismo do chefe da economia. A contenção das despesas públicas implícita na meta de “zerar o déficit” certamente vai criar outras dificuldades para Lula cumprir com suas promessas de campanha.

Ao invés de conseguir instrumentos para realizar o sonho de “fazer 40 anos em 4”, o Presidente é bem capaz de se ver em meio a um pesadelo de retirar as garantias constitucionais dos pisos para as despesas de saúde e de educação. Afinal, esse era o desejo não realizado de figuras ultraconservadoras como Henrique Meirelles e Paulo Guedes, que passaram pelo comando da economia depois do golpe contra Dilma Rousseff.

Caso Lula mude de opinião ainda a tempo de apresentar uma emenda ao Projeto da LDO antes da votação da matéria agora em dezembro, o cenário para 2024 pode ficar um pouco menos tenso. Para tanto, bastaria reconhecer a necessidade de um déficit primário de 1% do PIB, por exemplo.

O governo não estaria cometendo nenhuma “irresponsabilidade” com esta simples declaração de intenções, ao contrário do que afirmam os “especialistas” a mando do financismo, que tentam enganar a opinião pública a esse respeito. Apresentar déficit primário não é nenhuma heresia. Aliás, essa é a realidade das contas públicas atualmente na grande maioria dos países ditos desenvolvidos.

No entanto, o que se vê na grande imprensa são declarações de integrantes da área econômica apontando para a necessidade de o atual governo encaminhar medidas visando a reduzir a obrigatoriedade de cumprimento dos mínimos que a Constituição estabelece os gastos com educação e saúde.

Uma loucura! Tanto o ocupante da Secretaria do Tesouro Nacional (vinculada ao Ministério da Fazenda) quanto o titular da Secretaria do Orçamento Federal (da estrutura do Ministério do Planejamento) já se manifestaram diversas vezes a esse respeito.

A cartada mais recente foi uma consulta formal encaminhada pelo governo ao Tribunal de Contas da União (TCU) solicitando autorização para que as regras dos mínimos de 15% e 18% sejam aplicadas  à saúde e à educação, respectivamente, apenas a partir de 2024.

A última palavra é de Lula

Tendo em vista a elevada sensibilidade suscitada pelo tema, nem Fernando Haddad nem Simone Tebet ousaram se manifestar publicamente sobre a retirada de tais pisos. No entanto, o silêncio dos ministros não significa que as áreas de cada uma das pastas estejam aguardando alguma orientação superior para agir.

Na verdade, a tecnocracia parece estar trabalhando com o cenário em que os mencionados pisos serão efetivamente quebrados e as despesas das áreas tão essenciais para as políticas públicas serão ainda mais reduzidas em 2024.

Lula já foi advertido dos riscos políticos e econômicos envolvidos na continuidade de tal estratégia austericida. No entanto, até o presente o presidente da República tem oferecido sinais públicos contraditórios a esse respeito.

Em uma ocasião, durante um café da manhã com jornalistas, ele afirmou que o governo “dificilmente” conseguiria atingir a meta de déficit fiscal equilibrado no ano que vem. No entanto, dias depois, em reunião com Ministros, ele descartou apresentar uma emenda para definir o resultado fiscal primário como deficitário em 2024.

O tabuleiro está montado e as posições das peças estão definidas. Cabe a Lula estabelecer a vontade do governo e evitar que o seu governo inicie o ano com uma perigosa aventura pela trilha da austeridade extremada e desnecessária.

* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum