ARGENTINA

Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas pode atingir a casa do vizinho...

Artigo de historiadora argentina e cientista social brasileiro debate os dilemas da Argentina e o legado do bolsonarismo no continente

Javier Milei e Jair BolsonaroCréditos: Reprodução/Redes Sociais
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No Brasil, existe um ditado que afirma: “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”. Com todo o respeito à sabedoria popular, embora não caia duas vezes no mesmo lugar, parece que um raio pode ao menos atingir a casa do vizinho. Isso porque, no dia 19 de novembro, a Argentina realizará o segundo turno das eleições presidenciais. Lá, assim como acontece no Brasil, os dois candidatos são muito diferentes. De um lado, Sergio Massa, advogado e atual ministro da Economia, líder da Frente Renovadora, que reúne políticos do peronismo, do kirchnerismo e de outros espaços, como os radicais (partido argentino centenário, aliado do ex-presidente Macri numa aliança prestes a desmoronar). O cargo que assumiu está em plena crise política e financeira.

Quem não acompanha o cenário político argentino talvez tenha dificuldade em entender por que um ministro da Economia de um país em crise chegou ao segundo turno como opção viável para a presidência. Duas questões explicam isso: a primeira é que o poder de compra permanece elevado no país, uma vez que os salários formais superam a inflação, em razão dos aumentos regulares. Apesar disso, assim como no Brasil, há muitos argentinos trabalhando na informalidade, portanto a inflação consome rapidamente seus salários. Estes são os eleitores mais irritados com o governo.

A segunda questão é de outra natureza: como disse Jorge Luís Borges, “não é o amor que nos une, mas o medo”. O medo de que o raio que atingiu a casa dos vizinhos brasileiros possa agora incendiar as casas dos argentinos. 

Javier Milei, da Libertad Avanza, economista e populista de extrema-direita, é ligado a grupos econômicos argentinos e se tornou conhecido pelas suas participações em programas de televisão de gosto duvidoso. Sim, e essa não é a única semelhança entre ele e Jair Messias Bolsonaro. Defensor do liberalismo radical, o candidato propõe “quebrar tudo”, começando do zero. Entre suas principais ideias estão a dolarização da economia (algo inconstitucional na Argentina), o abandono da educação e da saúde públicas, bem como de qualquer proposta de igualdade. Milei propõe a eliminação dos diversos subsídios existentes nos serviços públicos

de eletricidade, transporte e gás. Promete paralisar as obras públicas e privatizar as estradas. Quem quiser usar uma estrada ou rua deve pagar, afirma. Ele defende o fim das verbas rescisórias, dos abonos salariais e de um salário extra que existe desde 1945, instituído por Perón. Assim como seu apoiador brasileiro, Milei mobiliza imagens anticomunistas. Ele promete romper relações comerciais com os dois principais parceiros da Argentina: China e Brasil, definidos por ele como comunistas. Também defende a permissão da venda de crianças e de órgãos.

Suas propostas mobilizam a chamada agenda de costumes. Milei nega o casamento entre pessoas do mesmo sexo e defende a possibilidade de os homens negarem a paternidade. Nos debates políticos, ele usa linguagem violenta contra os oponentes. A sua violência contra quem pensa diferente é característica da sua pessoa e do seu espaço político. Sua candidata a vice-presidente é Victoria Villarruel, filha e neta de soldados. Advogada, defensora de militares condenados por crimes contra a humanidade, admiradora de Videla, um dos líderes militares que governou a Argentina durante a última ditadura, para muitos, ela é mais perigosa que o próprio Milei.

Milei apresenta-se como um candidato antissistema. Defende o fim das “castas”, insurgindo-se contra os funcionários públicos em geral, e não apenas os mais graduados, com destaque para os funcionários do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Ficam de fora de sua mira outras “castas”, como a dos juízes com nomeação vitalícia, que gozam de diversos privilégios. O curioso é que, desde 2021, quando se elegeu deputado nacional pela cidade de Buenos Aires, apesar de lutar contra as “castas”, Milei não comparece às reuniões da comissão de trabalho e, até agora, faltou à metade das sessões do Parlamento. Comportamento muito semelhante ao do seu homólogo brasileiro.

No último domingo, em um debate na televisão argentina, Milei afirmou que houve fraude nas eleições de outubro.  Essa operação, que imita Trump e Bolsonaro, parece começar a ganhar força. Nestes últimos dias, o tribunal eleitoral argentino afirmou que não dispôs o número necessário de cédulas para os eleitores nos locais de votação. Ainda não se sabe o que o órgão fez com o dinheiro que o Estado lhe confiara para imprimir aquelas cédulas, mas suspeita-se que a falta delas no dia das eleições é o que permite aos seguidores de Milei “confirmar” a ideia de fraude nas eleições ou a incapacidade de votarem na opção que desejavam, negando assim o resultado das urnas, expressão da vontade do povo argentino. Se assim for, são esperadas ações violentas como as que ocorreram nos Estados Unidos e no Brasil.

Por outro lado, o apoio ao candidato Massa é crescente. Nos últimos dias, ele reuniu artistas, sindicatos, grupos LGBTQIA+, igrejas evangélicas, ativistas de diversos movimentos políticos, universidades, cientistas, associações civis, aposentados, radicais e peronistas. A visão atual de muitos argentinos é que a democracia está em risco por causa de Milei, o candidato violento, misógino, autoritário e com pouca estabilidade emocional. As ideias de “aniquilar o inimigo” e “esmagar” os socialistas, menções às “forças do céu” e o discurso messiânico que propaga são indícios, para muitos, de um movimento com características fascistas na Argentina. Milei e seu séquito souberam como conseguir isso, portanto não podemos ficar em posição morna. #NoAMilei é o slogan que mais se repete nos dias de hoje. Esperamos que sim, continuemos a lutar por uma democracia para todos, em todos os lugares do mundo, por uma democracia que melhore a cada dia.

Por Carla Sangrilli, professora e doutora em História pela Universidade Nacional de Mar del Plata, Argentina, e Josué de Souza, professor, cientista social e doutor em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional de Blumenau (Furb)