Há um conto do escritor inglês Charles Dickens em que ele narra a história de um veterano ator, que na hora da morte, mesmo muito debilitado em seu leito, levanta-se com vigor na força do último suspiro e antes de tombar para os mistérios começa a interpretar falas de vários personagens que viveu no teatro. Penso que, simbolicamente, a atriz Dulcina de Moraes partiu assim, mas seu espírito permanece sobre o palco.
Conta a lenda que no Teatro Dulcina, do que resta dele, localizado no Conic, endereço underground de Brasília, ou no Setor de Diversões Sul, para os mais pudicos, quando o teatro está vazio ouvem-se vozes, gargalhadas, passos, etc. A suspeita é a de que o próprio espírito da atriz circula pelo espaço. Certamente, acompanhada por muitos personagens que conviveram ou contracenaram com ela ao longo de muitos anos. Como se sabe, Dulcina mudou-se do Rio de Janeiro para Brasília, na década de 70, disposta a investir todas as suas economias na criação de uma Faculdade de Artes e de um teatro que promoveriam as artes cênicas no coração da capital do Brasil. A metonímia concretista dos paradoxos.
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Assim como muitos nordestinos aguerridos que para cá vieram em paus-de-arara vislumbrando outros tempos, Dulcina aqui chegou numa caravana da ilusão, viagem utópica de seres inquietos, disposta a contribuir para as mudanças necessárias ao Brasil, através da educação e da arte. Na boa ginga, driblou generais.
Bom, hoje, todos sabemos das dificuldades enfrentadas por aquela instituição. Porém, é impossível falarmos do abandono do Teatro e Faculdade Dulcina sem falarmos do esquecimento do próprio Conic, onde nem sequer um outro de seus célebres e históricos espaços, a “Baixaria”, conseguiu resistir. E lá se foram também a Livraria Presença e o Café Belas Artes. O velho Conic do Cine Atlântida e também do Cine Ritz, a “mulher aranha” que surgia no primeiro, despia-se no segundo, aquecendo os hormônios juvenis possuídos por forças infernais.
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Brasília sempre pareceu ser a síntese perfeita entre a ruína e o canteiro de obras, repleta de contradições como o apartheid social existente entre o Teatro Nacional (há mais de dez anos fechado) e a rodoviária, ponto de encontro do fluxo periférico migratório da mão-de-obra barata que ainda carrega nas costas os mesmos fantasmas do capitalismo que assustavam sua ancestralidade candanga dos tempos da construção da cidade.
O Conic, para a elite local, é como a comida azeda do acampamento da Vila Planalto que sofreu um verdadeiro massacre nos primórdios da capital. A conjunção (planetária) do centro de Brasília tem como fundamento a marginalização, o preconceito, a discriminação de todas as tribos que ali tentam sobreviver com dignidade. O viaduto da rodoviária não dá liga entre as classes sociais. Os camelôs correndo da polícia enquanto playboys desfilam com seus carrões. Brasília é um caos, uma barafunda! Um eldorado tão esfolado quanto a Serra Pelada.
O Teatro Dulcina reflete tudo isso numa espécie de relógio sem ponteiros. Como se estivesse sempre em cartaz uma peça de Samuel Beckett, na qual o abandono e a solidão fundamentam um roteiro que escorre pelos becos, corredores e escondidinhos do Setor de Diversões Sul, delineando a semiótica labiríntica dos desertos urbanos, cortinas puídas à guisa de cobertor na calçada fria dessa ilha perdida no meio do nada.
Soa o terceiro sinal, apagam-se as luzes e ouvem-se os gritos de uma mulher. A voz de Dulcina de Moraes, vinda do além, puta da vida com tanto descaso.
Adeilton Lima é ator e professor