LITERATURA

Nove trechos de Clarice Lispector para alterar a química do seu cérebro

“Repleta e ininteligível”, ela queria as vastas distâncias, mas mantendo o estado divino de simplicidade; confira a seleção de trechos extraídos de cada um de seus nove romances publicados

Clarice Lispector ao lado de Simon Gonzalez no Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, Bogotá, Colômbia, 1975..Créditos: Domínio Público
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Clarice Lispector foi uma das escritoras mais famosas e emblemáticas da língua portuguesa. Descrita como uma “bruxa” da literatura — o que lhe garantiu o discurso de abertura, em 1975, do  1º Congresso Mundial de Bruxaria, sediado na Colômbia —, ela tratava de temas tão profundos e tão simples quanto a existência e a morte, o sagrado e o infernal, o amor das mulheres e dos homens, o esquecimento das pessoas e das famílias, os ovos de galinha e o submundo em que habitam as palavras, desafiador e impenetrável, mas cujo acesso é permitido no ato da entrega.

“Repleta e ininteligível”, ela queria as vastas distâncias, mas mantendo o estado divino de simplicidade. Seu segredo era aspirar à grandeza sentimental, mas nunca à conquista do mundo externo, que é melhor absorvido e só existe mesmo dentro.

Nesta seleção de trechos extraídos de cada um de seus nove romances publicados — e sem contexto oferecido que possa justificá-los —, a escrita de Clarice fala por si só, assim como os elementos que a tornam tão única e reconhecível.

1. De Perto do Coração Selvagem, 1943

Desejava ainda mais: renascer sempre, cortar tudo o que aprendera, o que vira, e inaugurar-se num terreno novo onde todo pequeno ato tivesse um significado, onde o ar fosse respirado como da primeira vez. Tinha a sensação de que a vida corria espessa e vagarosa dentro dela, borbulhando como um quente lençol de lavas. Talvez se amasse... E se pensou longinquamente, de súbito um clarim cortasse com seu som agudo aquela manta da noite e deixasse a campina livre, verde e extensa... E então cavalos brancos e nervosos com movimentos rebeldes de pescoço e pernas, quase voando, atravessassem rios, montanhas, vales... Neles pensando, sentia o ar fresco circular dentro de si próprio como saído de alguma gruta oculta, úmida e fresca no meio do deserto.

 Mas em breve voltou a si mesma, numa queda vertical. Examinou os braços, as pernas. Lá estava ela. Lá estava ela. Mas era preciso se distrair, pensou com dureza e ironia. Com urgência. Pois não morreria? Riu alto e olhou-se rapidamente ao espelho para observar o efeito do riso no rosto. Não, não o aclarava. Parecia uma gata selvagem, os olhos ardendo acima das faces incendiadas, pontilhadas de sardas escuras de sol, os cabelos castanhos despenteados sobre as sobrancelhas. Enxergava em si púrpura sombria e triunfante. O que fazia com que brilhasse tanto? O tédio... Sim, apesar de tudo havia fogo sob ele, havia fogo mesmo quando representava a morte. Talvez isso fosse o gosto de viver.

2. De O Lustre, 1946

Como era preciso ser delicada consigo isto ela aprenderia sempre mais, a cada momento que fosse cumprindo; viver como se sofresse do coração – tateando, dando-se boas notícias suaves, dizendo sim, sim, você tem razão. Porque havia um instante na permissão que alguém se dava que poderia chegar a um estarrecimento seco e tenso, a alguma coisa da qual simplesmente não se conseguiria dizer o fim. Um estado em que ter força seria a própria morte talvez, e a única solução estaria na entrega rápida do ser, rápida, de olhos fechados, sem resistência. Passava os dias no quarto. Enquanto os maridos trabalhavam, as mulheres vagavam pela pensão em roupões leves e floridos, reuniam-se na sala para conversar, uma pintava as unhas da outra, faziam-se penteados novos e emprestavam-se batôns, cosiam roupa, viam revistas, como os macacos do jardim zoológico. Só um casal mal aparecia. Ele tinha sobrancelhas baixas sobre olhos dissimulados, rosto minúsculo e orelhas largas como um morcego. Ela era pequena, de pouco pescoço, o peito ligeiramente saliente, dócil, curiosa e feia.

Os dois pareciam ligados por coisas secretas, como por um crime sexual; mas ele a protegia e ela se sentia protegida. Lembrou-se também de como agradecera quase ardentemente a uma delas que lhe emprestara uma revista e como então retraíra-se com frieza pensando que fora ridícula; subira para o quarto e ficara refletindo sobre se agradecera pouco ou se humilhara demais; e então procurara castigar-se não lendo logo a revista, buscando assim a perfeição? sim, meu Deus, mas sim, fora isso o que buscara, o corpo grande e tosco de criança, fora isso o que ela buscara com seriedade: a perfeição de si mesma. Uma larga e misteriosa vida de criança – era o que parecia ter sempre experimentado com olhos grandes e frios.

Lembrou-se também de como no silêncio do novo apartamento chegava-lhe tantas vezes aquilo que não faltava todos os meses e de como assim a vida se sucedia no seu corpo, impassível, seguindo um ritmo que ela assistia orgulhosa e inquieta, cuidadosa. Lembrou-se de como se sentava depois do jantar à mesa, docemente atenta, o coração transpassado pelo medo e pela espera; um vento leve perpassava pela superfície do corpo, esfriava o ar, a nova cortina estalara cega. Uma presença de brancos lábios assustados enlanguescia no ar, o silêncio era aspirado numa vertigem, ela inclinava a testa, um som vinha de longe da rua, nascido de movimentos e palavras: sim, sim..., respirava seu corpo fracamente, as pálpebras piscando. Sim, sim..., num cansaço surpreendido alguma coisa não se realizava, deslizava como o vento e desaparecia para sempre; um receio frio fazia-a estremecer; o longo e tenso silêncio aguçava-lhe inutilmente os sentidos... Passava os dias se compreendendo.

Lembrou-se enfim de como numa tarde, riscando a toalha com a unha, pareceu-lhe ter ouvido baterem à porta. Levantou-se e abriu-a sobre o corredor vazio. Não encontrar ninguém assustara-a tanto que ela recuara, fechara a porta rapidamente sem ruído e encostara-se à parede sentindo o coração bater tonto e brusco, aquela sensação de erro que jamais se elucidara, uma fatalidade soando no relógio com fineza e precisão. A solução estava na entrega rápida do ser, sim, sim, de olhos fechados, sem resistência. Isso era bem existir. Então era isso existir – precisava-se repeti-lo sempre e assim podia-se viver com certa felicidade absorta, maravilhada. Como buscar no centro das coisas a alegria? por mais que nalguma vez remota e quase inventada a tivesse encontrado e vivido nesse próprio centro. Agora possuía a responsabilidade de um corpo adulto e desconhecido. Mas o futuro viria, viria, viria. 

3. De A Cidade Sitiada, 1949

Podia-se pensar tudo contanto que não se soubesse. Embora ainda fosse arriscado. Oh, mas ela tomava cuidado. A cautela consistia em não ter ideia do que fazia; chamava seu olhar de “estou guardando a vassoura”; e esta precaução bastava. “Guardando a vassoura” olhava o vão do porãozinho enquanto, a um bonde, o sobrado se sacudia todo em bibelôs, paredes, vidros claros e escuridão. Mesmo o erro era uma descoberta. Errar fazia-a encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o lado empoeirado. Espiando. Porque alguma coisa não existiria senão sob intensa atenção; olhando com uma severidade e uma dureza que faziam com que ela não buscasse a causa das coisas, mas a coisa apenas. Severa, curta, rouca, real, mergulhada em sonho. De repente, como se eriçasse as penas, espantando-se: porque eram coisas intransformáveis! estritas! inconsumíveis pela atenção! “A coisa que está ali” era a derradeira impossibilidade. E atrás a cal da parede. Que cidade. A cidade invencível era a realidade última. Depois dela haveria apenas morrer, como conquista. 

4. De A Mação no Escuro, 1961

Mas é certo que na desordem de um primeiro encontro houve um momento em que os dois, enfim esquecidos do que penosamente queriam copiar para a realidade, houve um momento não preparado por ambos, dom da natureza, em que ambos precisaram saber por que o outro era o outro, e se esqueceram de dizer “por favor”; um momento em que, sem um injuriar o outro, cada um tomou para si o que lhe era devido sem que um roubasse nada do outro, e isso era mais do que eles teriam ousado imaginar: isso era amor, com o seu egoísmo e sem este também não haveria dádiva. Um deu ao outro a avidez em ser amado, e se havia certa tristeza em submeter-se à lei do mundo, esta obediência também era a dignidade deles.

Era o egoísmo que se dava inteiro. E como se na moça o desejo de presentear fosse maior do que o que ela tivesse a presentear, ela não sabia o que lhe dar, ela se lembrou de mães que dão aos filhos, e ela não se sentia maternal com aquele homem, mas com a grande força do irrazoável também queria lhe dar, somente para enfim ultrapassar o que se pode e enfim quebrar o grande mistério de se ser apenas um. Ela lhe deu seu pensamento inteiramente vazio dentro do qual estava ela toda. No querer dar, mais do que no se dar, algo se fizera: ela ganhara o mínimo destino de que também o breve inseto precisa. 

5. De A Paixão Segundo G.H., 1964

Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo. E tão imunda estava eu, naquele meu súbito conhecimento indireto de mim, que abri a boca para pedir socorro. Eles dizem tudo, a Bíblia, eles dizem tudo — mas se eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamarão de enlouquecida. Pessoas iguais a mim haviam dito, no entanto entendê-las seria a minha derrocada. "Mas não comereis das impuras: quais são a águia, e o grifo, e o esmerilhão". E nem a coruja, e nem o cisne, e nem o morcego, nem a cegonha, e todo o gênero de corvos. Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o imundo é a raiz — pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram, e conservaram-se iguais ao momento em que foram criadas, e somente elas continuaram a ser a raiz ainda toda completa.

E porque são a raiz é que não se podia comê-las, o fruto do bem e do mal — comer a matéria viva me expulsaria de um paraíso de adornos, e me levaria para sempre a andar com um cajado pelo deserto. Muitos foram os que andaram com um cajado pelo deserto. Pior — me levaria a ver que o deserto também é vivo e tem umidade, e a ver que tudo está vivo e é feito do mesmo. Para construir uma alma possível — uma alma cuja cabeça não devore a própria cauda — a lei manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do imundo sabendo que é imundo — também saberá que o imundo não é imundo. É isso?

6. De O Livro dos Prazeres, 1969

 Sua alma incomensurável. Pois ela era o Mundo. E no entanto vivia o pouco. Isso constituía uma de suas fontes de humildade e forçada aceitação, e também a enfraquecia diante de qualquer possibilidade de agir. Aliás sentir-se humilde demais era de onde paradoxalmente vinha a sua altivez de pessoa. E que sua altivez — que se refletia no modo flexível e tranqüilo de andar — sua altivez vinha da certeza obscura de que suas raízes eram fortes, e que sua humildade não era apenas humildade humana: é que qualquer raiz era forte, e sua humildade vinha da certeza obscura de que todas as raízes eram humildes, terrosas e cheias de úmido vigor na sua modéstia nodosa de raiz.

É claro que tudo isso não era pensado: era vivido, com uma ou outra rápida passagem de luz de holofote na noite iluminando o céu por um átimo de segundo de pensamento a escuridão. O que também salvara Lóri é que sentia que se o seu mundo particular não fosse humano, também haveria lugar para ela, e com grande beleza: ela seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta, como era humanamente, mas seria de forma permanente: porque se o seu mundo não fosse humano ela seria um bicho. Por um instante então desprezava o próprio humano e experimentava a silenciosa alma da vida animal. E era bom. "Não entender" era tão vasto que ultrapassava qualquer entender — entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não-entender como um simples espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez. 

7. De Água Viva, 1973

Já posso me preparar para o "ele" ou "ela". O adaggio chegou ao fim. Então começo. Não minto. Minha verdade faísca como um pingente de lustre de cristal. Mas ela é oculta. Eu agüento porque sou forte: comi minha própria placenta. Embora tudo seja tão frágil. Sinto-me tão perdida. Vivo de um segredo que se irradia em raios luminosos que me ofuscariam se eu não os cobrisse com um manto pesado de falsas certezas. Que o Deus me ajude: estou sem guia e é de novo escuro. Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito. Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em "ele" ou "ela". Por enquanto o que me sustenta é o "aquilo" que é um "it". Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida de matéria elementar.

8. De A Hora da Estrela, 1977

Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria. 

9. De Um Sopro de Vida (Pulsações), 1978

De repente eu me vi e vi o mundo. E entendi: o mundo é sempre dos outros. Nunca meu. Sou o pária dos ricos. Os pobres de alma nada armazenam. A vertigem que se tem quando num súbito relâmpago-trovoada se vê o clarão do não entender. Eu NÃO ENTENDO! Por medo da loucura, renunciei à verdade. Minhas idéias são inventadas. Eu não me responsabilizo por elas. O mais engraçado é que nunca aprendi a viver. Eu não sei nada. Só sei ir vivendo. Como o meu cachorro. Eu tenho medo do ótimo e do superlativo. Quando começa a ficar muito bom eu ou desconfio ou dou um passo para trás. Se eu desse um passo para a frente eu seria enfocada pelo amarelado de esplendor que quase cega. 

[...]

 Eu adivinho coisas que não têm nome e que talvez nunca terão. É. Eu sinto o que me será sempre inacessível. É. Mas eu sei tudo. Tudo o que sei sem propriamente saber não tem sinônimo no mundo da fala mas me enriquece e me justifica. Embora a palavra eu a perdi porque tentei falá-la. E saber-tudo sem saber é um perpétuo esquecimento que vem e vai como as ondas do mar que avançam e recuam na areia da praia. Civilizar minha vida é expulsar-me de mim. Civilizar minha existência a mais profunda seria tentar expulsar a minha natureza e a supernatureza. Tudo isso no entanto não fala de meu possível significado. O que me mata é o cotidiano. Eu queria só exceções. Estou perdida: eu não tenho hábitos.

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