Os terreiros de religiões de matriz africana tiveram um papel fundamental na formação do samba carioca, funcionando como espaços de resistência cultural e musical para a população negra no Brasil. Durante o período pós-abolição, esses locais não eram apenas centros religiosos, mas também pontos de encontro onde a cultura africana podia ser preservada e reinventada. Ritmos, cantos e toques de atabaques, herdados do candomblé e de várias vertentes africanas, influenciaram diretamente a cadência e a percussão do samba. Além disso, o culto aos orixás trouxe uma espiritualidade presente nas letras e nas celebrações do gênero musical, conferindo ao samba uma identidade marcada pelo sagrado e pelo ancestral.
Não se pode esquecer, por exemplo, a herança de Tia Ciata, que era praticante dessas religiões e transformou sua casa em um local de culto e festa, onde se misturavam música e espiritualidade. A presença dos orixás no samba se manifesta tanto nos enredos das escolas quanto nas referências a Exu, Ogum e Iansã, divindades associadas à comunicação, à guerra e aos ventos, elementos que simbolizam a força e a energia do samba. Assim, os terreiros não apenas influenciaram a musicalidade do samba carioca, mas também ajudaram a moldar sua essência como expressão de resistência, ancestralidade e celebração da cultura afro-brasileira.
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No entanto, ao analisarmos os últimos 10 anos de desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, essa ancestralidade parece ter sido esquecida em prol de temas mais “atuais” e outros até mesmo pagos como propaganda de governos, empresas, etc. Não é de se estranhar que, nos últimos anos, poucos foram os desfiles que tornaram-se memoráveis ou até mesmo sambas que tenham caído nas graças do povo, cantados por todos, independente de suas paixões pelas agremiações.
Desde 2014, foram pouquíssimos os enredos voltados para a herança africana do samba e o culto aos orixás, temas sempre recorrentes no samba, mas esquecidos pelas “super escolas de samba S.A.”, como denunciou o Império Serrano em seu inesquecível samba “Bumbum, Paticumbum, Prugurundum”, em 1982.
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Em 2014 e 2015 simplesmente nenhuma das escolas do grupo especial do Rio trouxe em seus sambas a referência africana ou dos orixás. Já em 2016 apenas duas agremiações resgataram os temas: a Estácio de Sá cantando sobre São Jorge (mesmo assim não há referência à Ogum) e o Salgueiro cantando uma homenagem aos “malandros”, cantando entidades como Seu Zé Pilintra e o “povo de rua” dos terreiros de candomblé. No ano de 2017 somente Mangueira e União da Ilha fizeram menção às tradições africanas, mas sem muito culto aos Orixás.
2018 repete a façanha de 14 e 15 e não traz nenhum enredo falando de África ou suas religiosidades. Somente Salgueiro, em 2019, traz o tema à baila, com um samba em homenagem a Xangô, orixá da justiça. Em 2020, num desfile que por pouco não aconteceu por conta da pandemia que já mostrava os primeiros sinais, apenas Grande Rio e Beija-Flor trouxeram temas africanos ou do candomblé para a avenida. A Grande Rio foi a vice-campeã nos critérios de desempate ao defender o enredo Tatalondirá - o canto do caboclo no quilombo de Caxias, que evocava a figura de Joaozinho da Gomeia e toda sua tradição com os orixás.
O que foi quase em 2020 transformou-se numa vitória arrebatadora em 2022 com o enredo Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu. Num desfile antológico e cheio de energia a Grande Rio levou o título de forma inquestionável com o Orixá que abre caminhos reinando absoluto na avenida. Laroyê! Ainda neste ano a Mocidade Independente de Padre Miguel cantou Oxossi e a Paraíso do Tuiuti cantando o legado dos orixás ao povo negro do Brasil.
Quando se pensou que as escolas voltariam a abraçar os temas originários de sua tradição religiosa, devido ao sucesso do ano anterior, em 2023 inexplicavelmente nenhuma delas trouxe temas que lembrassem a África ou os orixás. Silêncio absoluto. Em 2024, a única escola que trouxe um enredo regado de axé foi a Viradouro com Arroboboi, Dangbé, evocando o vodum e a força do axé com o refrão exaltando Dangbé, serpente mística cultuada no Noroeste da África. Resultado: a escola de Niterói sagrou-se campeã do carnaval carioca!
Em 2025, depois de tantas idas e vindas, parece que o carnaval carioca reacende a chama da africanidade e da força dos Orixás. Das 12 escolas que desfilarão no grupo especial, 10 delas trarão enredos que de alguma forma exaltam as tradições africanas ou os Orixás. Mesmo escolas que homenageiam personagens da nossa cultura como a Portela cantando Milton Nascimento e a Beija-Flor exaltando Laíla, carnavalesco que nos deixou em 2021 trazem em seus sambas referências aos orixás. Só duas escolas, Mocidade Independente de Padre Miguel e Unidos de Vila Isabel trazem temáticas diversas.
Mais que nunca o sambódromo, que fica na região onde era a casa de Tia Ciata, será transformado em um imenso terreiro, celebrando suas raízes no candomblé e cantando a herança africana de uma religiosidade que já foi proibida e hoje ainda enfrenta preconceitos e violências. O samba volta a ser negro, forte e carregado de axé! Quem viver, verá!