MUNDO E LITERATURA

SARAMAGO – Pilar del Río: Hora de “frear essa louca corrida rumo ao abismo”

Jornalista e personalidade intelectual de grande relevo, foi esposa de José Saramago, o único lusófono a receber um Nobel de Literatura. Agora, preside sua fundação

A jornalista Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago.Créditos: Bruno Colaço/FJS
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De LISBOA | A imponente e peculiar ‘Casa dos Bicos’, na Baixa Pombalina de Lisboa, sede da Fundação José Saramago, realizava aquela manhã um colóquio internacional que debatia a herança que o 25 de Abril deixou para o mundo, que hoje se vê novamente em conflito e sob ameaça do mal. Entre autoridades e figuras históricas que participavam do evento, estava ela, a jornalista espanhola Pilar del Río, presidenta da entidade.

Esposa de José Saramago, o único ser humano de língua portuguesa a receber um Nobel de Literatura, e seguramente o mais proeminente e relevante escritor intelectual de Portugal no século XX, até o final da primeira década do século XXI, quando morreu, no ano de 2010, Pilar recebeu a Fórum para uma entrevista exclusiva, em meio ao corre-corre do encontro que falava dos 50 anos da volta da democracia à pequena nação que ocupa a franja ocidental da Península Ibérica.

Já que o tema da Revolução dos Cravos embebia a atmosfera do recinto, a primeira pergunta foi sobre um Saramago ainda desconhecido, em meados da década de 1970, quando atuava profissionalmente como jornalista num país sob fortíssima censura do regime ditatorial inaugurado por António de Oliveira Salazar, que àquela altura já estava morto e tinha um “sucessor”.

“Quando ocorreu o 25 de Abril, José Saramago era só mais um cidadão entre muitos cidadãos que apenas estavam ali colocando o seu grãozinho de areia no processo. Ele colaborava com meios de comunicação, tratava de escrever da forma mais livre que a situação de censura lhe permitia, mas não foi um ser relevante no 25 de Abril, absolutamente. Depois da revolução de 25 de Abril, ele ocupou a direção executiva de um jornal, e se ocupava de escrever seus editoriais e da relação com os jornalistas. Mas não é por nada disso que nos lembramos de José Saramago. Nos lembramos dele porque escreveu, num livro, que somos cegos que, vendo, não veem. Repito. Somos cegos que, vendo, não veem. E por que escreveu ‘O Ensaio Sobre a Cegueira’? Porque também escreveu ‘Ensaio Sobre a Lucidez’. E ele disse que a vontade das pessoas, unida, pode formar uma passarela, e também porque disse que o sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo. Dessa forma, se nos recordamos de Saramago, não é por seu papel cívico e de cidadania, que foi aquele que apenas esteve à sua mão e que pôde fazer, mas sim por seu trabalho intelectual, que se ampliou a fundo, e onde pôs sua energia, sua capacidade literária, seu sentido comum e sua consciência para refletir sobre o nosso destino”, explicou Pilar.

Como o colóquio internacional em curso abordava justamente a herança da Revolução de Abril, a jornalista que foi companheira de Saramago por 24 anos é questionada sobre esse legado tão alardeado no país, embora o ambiente político, não só em Portugal, mas em toda a Europa e também nas Américas, seja de grande apreensão com o ressurgimento da extrema direita. Ela responde e ao fim sugere o que deve ser feito para que não caiamos no abismo.

“Para José Saramago, e estamos numa fundação chamada José Saramago, manter a memória era uma forma de humanidade. E claro, temos que manter a memória dos grandes feitos do passado, dos positivos, mas dos negativos também. Não podemos esquecer que tivemos duas guerras mundiais destrutivas, que houve genocídios, e tampouco podemos esquecer que a vontade das pessoas um dia se manifestou, e elas conseguiram conquistar a democracia em Portugal. Manter a memória para aprender, aprender o que não se pode repetir, aprender que temos que seguir mantendo o espírito conquistado no 25 de Abril, que é a participação e a firme decisão dos cidadãos de tomar conta de seu destino. Agora, 50 anos depois, nos damos conta de que, com certeza, nós, de uma geração mais antiga, não fizemos isso bem, não ensinamos esses valores, não ensinamos que é fundamental viver com dignidade a democracia, não ensinamos que a liberdade é um bem do qual não podemos prescindir. Não ensinamos que temos que ser responsáveis, ante nós mesmos e ante os outros. Porque os outros, no fundo, somos nós. Os outros, são outros nós. Então agora nos encontramos assim, com o mundo sofrendo uma situação de retrocesso, parece até que vivemos num mundo de ontem, e é por isso que fazemos uma jornada como esta, para refletir sobre o que fizemos, sobre o que tivemos de bom, mas sobre o que deve ser revisto, para com isso frear essa louca corrida rumo ao precipício”, disse a observadora senhora espanhola.

Como os movimentos fascistas têm tomado corpo especialmente em Portugal e na Espanha, dois países com muitas características em comum, e que se livraram de ditaduras fascistas tardiamente, mais de três décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, pergunto a Pilar sobre a obra “A Jangada de Pedra”, de José Saramago, publicada em 1986, que em sínteses retrata uma Península Ibérica que se desprende fisicamente da Europa e sai “boiando” no Oceano Atlântico, numa alegoria que faz clara alusão ao isolamento dessas duas nações por muito tempo e que as deixou com um enorme hiato social, econômico e político em relação ao resto do continente. O que diria o Nobel de Literatura, se vivo estivesse, sobre o novo cenário.

“Eu nunca me permitiria dizer o que diria Saramago, mas o que posso me permitir é lembrar o que Saramago fez e disse. Ele escreveu “A Jangada de Pedra” e assumiu a reflexão de um político espanhol, que escreveu no jornal El País, e ele [Saramago] disse ‘esse homem soube ler o romance A Jangada de Pedra’... E que era um puxão que arrastava [a Península Ibérica] até o Sul. Mas a maior parte das pessoas não estavam se dando conta disso. A Península Ibérica, Portugal e Espanha, se vá para a América. Sim, claro que sim... Sim, porque estavam interrompendo o diálogo da Guerra Fria. Não se tratava de Estados Unidos, de União Soviética. Era algo como ‘vamos até o Sul’. José Saramago, em ‘A Jangada de Pedra’, tentou. E o fez sendo a ilha de Lanzarote sua casa, na metade do oceano, e um ponto de comunicação, e de pessoas, e de ideias, e de diferentes continentes. O fato é que antes de morrer, voltou a refletir sobre este assunto ibérico, e não lhe interessava o iberismo, mas sim o transiberismo. Ele dizia ‘somos transibéricos, porque temos também uma memória, um pé, um passado, um conjunto com outros povos que falam outros idiomas, não necessariamente o português e o espanhol, como esses outros povos que estão aí, e que têm nossos costumes, e é preciso que viajemos e nos conheçamos mutuamente’. Ele defendia a bacia cultural do Atlântico Sul, e dizia que Espanha e Portugal, também saindo da Europa, mas se juntando à América Latina, com Brasil, com Argentina, com os países da África, e com esta zona para fazer uma ‘bacia cultural’ que sirva também como alimento, não só para cobrir as necessidades, mas também como alimento das almas e dos espíritos, porque são muitas culturas reconhecidas”, detalhou a jornalista.

O crescimento da extrema direita, aliás, é alvo de pesquisas e análises. Praticamente todas elas concluem que o ponto central nessa escalada de autoritarismo passa pela assimilação e aceitação do discurso de ódio pelos jovens. Peço a Pilar que deixe um recado a essas gerações mais novas, caso leiam sua entrevista.

“Os jovens que pensem e tratem de construir seu presente e seu futuro, e que esqueçam das más lições que estamos lhes dando, enxergando como se o mundo tivesse apenas uma dimensão. Não, não. Há dimensões até o infinito. Os jovens têm que pôr em marcha a imaginação e a solidariedade. Se não puserem em marcha a solidariedade, serão objeto provavelmente do abandono. Só sendo solidários uns com os outros é que encontraremos a memória e harmonia”, aconselha.

Por fim, Pilar revela qual é, em sua perspectiva, a função de organizações como a Fundação José Saramago num mundo em constante mudança e que se vê diante de perigos já vividos no passado e que levaram a humanidade à barbárie.

“Esta é uma fundação privada que se mantém com os direitos do autor, e há muito poucas no mundo com estas características. Pergunto: em que podem colaborar e em que podem ajudar as fundações? Pois bem, eu conheço algumas e são organizações sem maior interesse no bem comum. Há, sim, outras que têm interesses culturais e humanísticos. Esta, neste sentido, é pequena, mas muito ambiciosa. Queremos chegar a todos os seres humanos e queremos que estejam sempre aqui todas as ambições e desejos nesse sentido. Queremos contribuir para que o mundo seja melhor, que os direitos humanos sejam respeitados e que o planeta seja uma casa para todos e cada um dos cidadãos”, concluiu.