MODA E POLÍTICA

Bonita camisa, governador: o espanto de um político sem terno e gravata

Roupas que vestimos passam mensagens complexas e chamam a atenção para pautas políticas, como desigualdades regionais, decolonização, pluralidade, estereótipos e representatividade

Créditos: Agência Pará (Marco Santos) - Presidente Lula e governador do Pará, Hélder Barbalho, durante Cúpula da Amazônia
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É raro a roupa usada por um homem virar notícia. Mas acontece. Como o guarda-roupas escolhido pelo governador do Pará, Hélder Barbalho, durante os Diálogos Amazônicos e a Cúpula Amazônica, eventos realizados em Belém, capital paraense. Ao invés de terno e gravata, o traje que é praticamente o uniforme na política, ou uma camisa branca e básica, ele optou por camisas com motivos marajoaras.

As peças usadas pelo governador são feitas de tricoline, um tecido de algodão, e decoradas com galão, que é uma fita aplicada em padrões diferentes, e foi feita por uma confecção de artesãs marajoaras que vende a produção na loja do Museu do Marajó, localizada no município paraense de Cachoeira do Arari.

O jornal O Liberal, do Pará, informa que a camisa de Barbalho foi costurada e decorada por Maria Da Cruz, que é de Soure, cidade que fica na Ilha do Marajó. Além dela, muitas mulheres costuram trajes com padrões marajoaras como modo de ganhar a vida. 

A arte marajoara representa a produção artística, sobretudo em cerâmica, dos habitantes da Ilha de Marajó e é considerada a mais antiga arte cerâmica do Brasil e uma das mais antigas das Américas. 

Anfitrião do encontro para tratar da questão amazônica, ao lado do presidente Lula, Barbalho fez um discurso histórico e reconheceu os desafios na preservação do bioma amazônico e voltou a defender oportunidades de desenvolvimento socioeconômico sustentável.

“O fato de estarmos reunidos por iniciativa do presidente Lula é testemunho da importância política, social, ambiental, econômica e diplomática da Amazônia. Aqui estamos para reafirmar ao mundo que a Amazônia é preocupação cotidiana, urgente e desafiadora de todos os que aqui vivem, se dedicam a esta região e ao seu povo”, discursou o governador paraense.

A camisa de Barbalho foi um elemento extra da potência da Amazônia e amplificou a mensagem do governador sobre os desafios da região.

Por que o estranhamento?

Qual o motivo para que uma peça de roupa de algodão, em um estado amazônico que registra nesta quarta-feira (9) temperatura de 27 graus Celsius, causar estranhamento e o uso de terno como regra, não?

"A primeira coisa que sinto é uma 'estranheza' em ver o homem branco da política sem o clássico terno e camisa social, ou a polo. A estranheza pode sinalizar algo bom ou ruim… Ou ele tá se aproveitando da cúpula em Belém, do tema em pauta da Amazônia, e colocando essa peça para ganhar credibilidade, ou ele de fato tá dando espaço pra uma tentativa de look decolonizado", pondera a coordenadora de mobilização Fashion Revolution Brasil, Marina de Luca.

A camisa do governador, para além da estética marajoara, ecoa também questões políticas. Entre elas, as desigualdades regionais do Brasil e a dinâmica de centro e periferia que ocorre entre países do norte e do sul global e se repete na nossa realidade local. Nessa dinâmica, um xadrez da Inglaterra é considerado algo clássico. Mas a estampa marajoara é tida como exótica. Daí vem essa leitura de Mariana sobre um look 'decolonizado'. 

Pluralidade

Já a ativista de moda de Manaus Glícia Cáuper, artesã, advogada e representante Fashion Revolution Manaus, lança um olhar sobre a diversidade e a pluralidade estética e cultural dos povos amazônidas. Ela destaca que a região é plural: tem indígenas, negros, brancos e outras diversas etnias convivendo no mesmo espaço.

"Pra não entrarmos no campo da reprodução de tipos estereotipados nas nossas produções, precisamos pensar em representar a todos, para não associarem uma região tão grande e complexa a uma única estética, a um único biotipo", comenta.

Como criadora de moda, ela avalia que representantes dos povos da Amazônia com alcance e visibilidade "nacional" precisam fazer um exercício de verificar o que está fazendo e comunicando no seu vestir.

"É muito conveniente não utilizarmos produtos regionais no nosso dia a dia, mas utilizarmos eles no contexto 'nacional', apenas porque sabemos que alcançaremos algum destaque na cultura de visibilidade contemporânea. Cabe aos outros não procurar em nós uma cultura purista, que negue todo nosso processo histórico e as contaminações culturais e cabe a nós, não dar a eles exatamente o que esperam de nós, o exótico, o puro, o 'não contaminado'", afirma.

Visão semelhante expressou o designer de moda Sioduhi, do povo Pira-tapuya, de Rio Branco, capital no Acre. Em entrevista ao site Sumaúma, em janeiro deste ano, ele falou sobre sua experiência em São Paulo no mercado de moda.

“Muitas vezes esperam que eu crie alguma coisa muito tradicional, alguma coisa muito caricata, uma coisa muito óbvia, e eu não gosto de coisas óbvias, porque no âmago eu quero criar algo que vá além", disse.

Guayabera

Outra vestimenta que de vez em quando é usada por políticos em lugar do terno é a guayabera. Quando Fidel Castro decidiu aparecer em público pela primeira vez em 35 anos sem sua habitual veste militar verde-oliva, em 1994, durante a 4ª Cúpula Iberoamericana em Cartagena das Índias, na Colômbia, usou uma guayabera branca de manga comprida combinada com calças azuis.

A guayabera, uma camisa de algodão ou linho caracterizada pelos quatro bolsos e faixas pregueadas verticais, havia sido exigida pela primeira vez aos chefes de Estado como traje oficial do evento. Desde então, sempre que a Cúpula cai num país tropical, a guayabera é adotada.

A camisa é um exemplo de vestimenta repleta de simbologia política, com forte conotação esquerdista e signo da integração da América Latina. Não há certeza sobre as origens da camisa, e sua criação é disputada pelo México, República Dominicana, Cuba e até pelas Filipinas. O que se sabe é que a guayabera existe desde pelo menos o século 18, e que está mais ligada à tropicalidade do que à ideologia. Não precisa ser de esquerda para usar o icônico modelo.

Geopolítica da roupa

As roupas transmitem mensagens complexas, têm função de nos diferenciar e funcionam como um instrumento para mostrar hierarquias sociais, políticas e econômicas. Na política, o terno é a vestimenta padrão dos homens dos países do ocidente. 

Otan - Otan reúne os líderes de 32 países e o secretário-geral da aliança

Países de tradição muçulmana, em geral, adotam as próprias vestimentas. No Irã, por exemplo, desde a revolução de 1979 as lideranças políticas passaram a usar vestimentas próprias e baniram o uso da gravata, que é vista como forma de submissão ao Ocidente. Há alguns casos de lideranças iranianas que até usam camisa e paletó, mas se recusam a usar gravata.

ONU - 
Presidente do Irã, Ebrahim Raisi, discursa na 77ª sessão da Assembleia Geral ONU em 2022

Símbolo fálico

Reprodução The Buffler

A despeito de ser ou não um símbolo de submissão para o Ocidente, a gravata é uma peça curiosa. Os outros itens que compõe o terno foram pensados para serem práticos: em geral em cores escuras, sóbrios e sem graça. Menos a gravata, que destoa do conjunto por não ter nenhuma função, ser colorida e, além disso, desconfortável.

O antropólogo e ativista David Graeber propôs uma reflexão bem divertida sobre o uso dessa peça em um artigo na revista The Buffler, em 2015.

"A modelagem larga do calça do terno, combinada com o tecido mais encorpado que em geral se usa e com a barguilha invisível, apaga completamente o pênis", escrevem Maura Cotta e Thais Farage no livro "Mulher, roupa, trabalho - como se veste a desigualdade de gênero".

Essa estética é um contraponto aos modelos usados por homens antes da ascensão da burguesia, quando usava-se tapa-sexo e as calças eram colantes e demarcavam muito o volume das pernas.

Reprodução - Henrique VII por Hans Holbein 

Para Grauber a explicação é que se o pênis biológico é apagado no terno, surge em seu lugar outra figura fálica. A gravata seria, portanto, um deslocamento simbólico do pênis - um pênis intelectualizado, que se pendura não na virilha, mas na cabeça de alguém.