Esta semana eu me encontrei com um casal amigo, que estava com o filho pequeno. O que me chamou a atenção é que o menino veio todo contente me mostrar o livro que estava começando a ler. Era um livro de umas 200 páginas, que ele me apresentou orgulhoso e feliz. Havia acabado de ganhar, me pareceu, de tão novo que estava. Eu me lembro que fiz um comentário sobre a capa e ele me confessou que conhecia o autor, que acompanhava de outros livros.
Achei raro, em meio a crianças viciadas em celulares e tablets. Até que escutei a mãe negando o celular a ele por algum motivo — castigo ou simples controle.
Eu me lembrei de minha filha, que era uma devoradora de livros mais ou menos com a idade desse filho do casal amigo. Livros grossos, que ela começava a ler e ia até o final numa batida só. Foram coleções inteiras.
Hoje, não desgruda do celular, 24 horas por dia. Até os livros lê ali. Pelo menos nunca mais vi um livro impresso em suas mãos.
Curiosa essa infância atual quando a gente se espanta com uma criança com um livro impresso, pois o "brinquedo" onipresente é o celular.
E eu me peguei pensando na facilidade de dar presente às crianças hoje. Com a industrialização e a exploração da mão de obra capitalista, há brinquedos para todos os bolsos, menos para os que nem têm para a alimentação, que infelizmente ainda são muitos.
Mas não era assim na infância de minha mãe, por exemplo, quando os brinquedos ainda eram quase todos manufaturados, caros, muitos importados, e as pessoas da classe operária como ela tinham de improvisar ou usar a imaginação.
Minha mãe me contava que nunca teve uma boneca na vida. Nem ela nem as irmãs. O brinquedo dela era uma tampa de lata de leite em pó. Essa era sua "boneca". Seu brinquedo que voava, se ela o lançava para o alto. Era uma forma, onde ela misturava terra, folhas, gravetos e o que mais tivesse à mão para assar seu imaginário bolo. Servia também de sala de aula. Ela, que teve que abandonar a escola cedo para trabalhar (e ela amava a escola e as amigas que tinha por lá), também fazia de sua tampa de leite em pó uma sala de aula com pedrinhas pequenas como alunos e uma maiorzinha como a professora.
A outra brincadeira preferida dela era de graça, mas dependia da natureza: com o vento, como já contei aqui.
Contraditoriamente, para comparar com os dias atuais, a família de minha mãe, de origem portuguesa, comia bacalhau com certa regularidade. Meu avô costumava comprar uma peça inteira, o que está bastante distante da realidade de uma família de operários de baixa qualificação nos dias de hoje.
No Natal, meu avô se deliciava, além do bacalhau com couve tronchuda, com um prato de castanhas, que ele comia enquanto esvaziava um garrafão de vinho, que ficava sobre a mesa para ele ir se servindo.
O Natal era o reencontro de meu avô com o menino que foi, trabalhador do campo numa região atrasada do atrasadíssimo Portugal da era Salazar, quando sua diversão era filar vinho do grande tonel onde eram armazenados no vinhedo onde trabalhava.
Não sei de que jeito, ele me contou, faziam um canudo de bambu que enfiavam no barril e conseguiam filar o vinho do patrão, ele e os amigos, ficando todos alegres o suficiente para suportar o trabalho duro.
Tudo isso me veio à cabeça porque este mês é o do aniversário do assassinato de Che Guevara, dia 9, e mais uma vez as redes ficaram inundadas com a icônica foto do guerrilheiro e sua boina, feita por Alberto Korda.
Korda foi um fotógrafo cubano, que vivia de fazer pequenos trabalhos, cobrindo casamentos, festas de aniversário, batizados. Depois, segundo ele mesmo, começou a fazer fotografia de moda "para conhecer mulheres bonitas".
Até que um dia Korda viu uma menina pobre, muito encolhidinha com sua boneca grudada no corpo, protegendo-a daquele homem que a olhava. Korda bateu a foto e ela mudou sua vida.
A boneca da menina era um pedaço de madeira, que ela agasalhava com um tanto de papel. Eram sua boneca com seu vestido. Ele conseguiu captar a história daquela criança numa foto. E aquilo mudou a vida de Korda de vez.
A partir dali, o fotógrafo engajou-se na luta e virou o fotógrafo oficial de Fidel e dos revolucionários cubanos.
Tudo isso porque, quando Korda olhou para o olhos da menina da boneca, os olhos da menina também olharam para Korda, como o abismo de Nietzsche nos olha de volta.
Num celular, num livro, na tampa de uma lata de leite em pó ou num pedaço de madeira que virou boneca,uma criança brincando pode não apenas mudar o mundo, mas criá-lo.
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