"RETOMADAS"

Obras do MST: após recuo do Masp ao veto, curadoras pedem acesso livre ao público na mostra

Após repercussão negativa e demissão de Sandra Benites, primeira curadora indígena de um museu, Masp voltou atrás e propôs adiar mostra que contaria com obras relacionadas ao MST; confira carta das curadoras

Foto histórica do MST que havia sido vetada de exposição do Masp.Créditos: André Vilaron
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Em carta divulgada nesta quinta-feira (26), Sandra Benites e Clarissa Diniz, curadoras do núcleo "Retomadas", que conteria obras relacionadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e que faria parte da mostra "História Brasileiras" no Museu de Arte de São Paulo (Masp), informaram que aceitam retomar o trabalho junto à exposição.

A decisão vem após Masp recuar do veto que havia imposto às obras - cartazes históricos e fotografias dos artistas João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ relacionadas ao movimento social - e propor adiar a mostra, que estava prevista para julho. O recuo do Masp vem após Sandra Benides, primeira curadora indígena de um museu de arte no Brasil, pedir demissão diante do ocorrido. 

O veto havia sido justificado pelo Masp com o argumento de que o prazo estipulado para o empréstimo das obras teria sido extrapolado. As curadoras, no entanto, dizem que não foram avisadas pela instituição sobre essa data limite e o caso gerou grande repercussão. 

Na carta enviada ao museu, as duas curadoras afirmam que receberam "com satisfação" a nota em que o Masp informa que voltou atrás no veto às obras. Elas ponderam, contudo, que a instituição não fez pedido de desculpas e que sequer mencionou o pedido de demissão de Sandra Benides. 

"A inexistência de uma reposta à saída da curadora — tanto na nota, quanto nas  tratativas institucionais (posto que até o momento não houve retorno do Museu à sua carta de demissão) — é um alerta acerca dos apagamentos insistentemente  perpetrados pelas políticas do MASP e, por isso, sublinhamos que nos parece absolutamente urgente que seus representantes se posicionem e respondam, tanto  pública quanto privadamente, à demissão de Benites", diz um trecho da carta. 

"Ressaltamos que, em seu movimento autocrítico, o Museu pode aprofundar suas  reflexões acerca de como deseja estabelecer relações de trabalho respeitosas e  produtivas com seus curadores adjuntos e, principalmente, de como anseia aproveitar a  oportunidade de ter, como foi o caso de Sandra Benites, curadoras indígenas em sua  equipe", prosseguem as curadoras. 

Sandra e Clarissa ainda fazem uma série de sugestões e pedidos ao Museu para a retomada da exposição, que foram construídos após diálogo com membros do MST e os autores das obras. Entre eles está, por exemplo, a possibilidade da mostra ter acesso gratuito ao público

Confira abaixo a íntegra da carta 

Prezados presidente do conselho deliberativo, diretor presidente e diretor artístico do  Museu de Arte Assis Chateaubriand, MASP, 
Srs. Alfredo Egydio Setubal, Heitor Martins e Adriano Pedrosa, 

Escrevemos esta carta em resposta à nota publicada pelo MASP no dia 20.5.2022 e a  endereçamos aos senhores imaginando que, a despeito da falta de assinatura, as  posições nela externadas, assumidas pelo Museu, sejam de atribuição de seus presentantes – dirigentes deliberativos, estatutários e executivos.  

Além da necessidade de mantermos a interlocução com os dirigentes do MASP e não  com uma instituição dessubjetivada, posto que estamos sendo individual e  publicamente expostas por essas circunstâncias, sentimo-nos também mais  confortáveis ao nominar os demais sujeitos implicados nesta relação. 

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Recebemos com satisfação a nota publicada pelo MASP.  

Consideramos importante o gesto de reconhecer as falhas da instituição na relação  estabelecida conosco no processo de produção de Histórias Brasileiras, como também  o erro de, posteriormente, o Museu haver publicamente nos responsabilizado por tais  equívocos. Por isso, em que pese não haver na nota um pedido de desculpas,  compreendemos que o seu conteúdo reflete o esforço institucional na direção de uma possível reparação pela situação desgastante em que nos encontramos. 

Temos consciência de que a diligente resposta dos públicos do MASP, a mobilização  popular, a repercussão nacional e internacional do caso e o apoio de artistas que se  retiraram de Histórias Brasileiras foram centrais para o movimento autocrítico do  Museu.  

Contudo, também acreditamos que este gesto advém da agência de sua equipe. Nesse  sentido, apostando no trabalho de seu corpo de funcionários, apoiamos a posição  autorreflexiva da instituição na expectativa de que ela possa ensejar uma concreta  transformação nas políticas do MASP. 

– 

Na nota do Museu, devemos apontar, todavia, a preocupante ausência de menção à  maior das consequências diretas do veto e do cancelamento do Retomadas: o pedido  de demissão de Sandra Benites da curadoria adjunta.  

A inexistência de uma reposta à saída da curadora — tanto na nota, quanto nas  tratativas institucionais (posto que até o momento não houve retorno do Museu à sua carta de demissão) — é um alerta acerca dos apagamentos insistentemente  perpetrados pelas políticas do MASP e, por isso, sublinhamos que nos parece absolutamente urgente que seus presentantes se posicionem e respondam, tanto  pública quanto privadamente, à demissão de Benites. 

Ressaltamos que, em seu movimento autocrítico, o Museu pode aprofundar suas  reflexões acerca de como deseja estabelecer relações de trabalho respeitosas e  produtivas com seus curadores adjuntos e, principalmente, de como anseia aproveitar a  oportunidade de ter, como foi o caso de Sandra Benites, curadoras indígenas em sua  equipe. 

A despeito desta pungente lacuna, acolhemos a iniciativa do Museu e, buscando somar nos à disposição institucional de refletir sobre suas próprias práticas, gostaríamos de, a  partir da nota publicada, tecer algumas considerações e proposições. 

– 

Em resposta à proposta do MASP, colocamo-nos à disposição para, como mencionado, sermos ouvidas, junto ao MST e demais sujeitos envolvidos, “para que episódios  semelhantes não se repitam no futuro”.  

Contudo, apesar de acreditarmos que nossa experiência pode colaborar para tornar  menos autoritários e mais eficientes “os processos e modelos de trabalho” do Museu,  sugerimos que esta escuta se dê primordialmente junto aos seus funcionários e demais colaboradores.  

Uma vez que a autocrítica não pode ser um evento, senão fundamentalmente um  processo, por sua vivência cotidiana com os desafios e potencialidades da instituição, entendemos que é a própria equipe do Museu que deve ter papel central em suas  transformações. 

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Mais adiante, em sua nota, o MASP também propõe “adiar a abertura da exposição e  reorganizar o seu cronograma para que possamos incluir o núcleo “Retomadas”” em  Histórias Brasileiras. 

Aceitamos a proposta do Museu e vamos, sim, retomar as Retomadas mediante a  permanência das fotografias de André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e João Zinclar  que foram anteriormente excluídas do núcleo. 

Entretanto, sobre este ponto, gostaríamos de fazer algumas considerações absolutamente determinantes. 

A proposta pública do Museu de Arte Assis Chateaubriand em voltar a realizar o  Retomadas oblitera as circunstâncias legais nas quais fomos colocadas na negociação  em curso para a rescisão de nossos contratos de trabalho, dado o cancelamento do  referido núcleo. 

A minuta de distrato proposta pelo Museu demanda que os “direitos autorais  patrimoniais de todos os trabalhos produzidos” por nós sejam “cedidos à  CONTRATANTE”, ou seja: que os direitos de realização do Retomadas sejam não de suas  curadoras, mas do MASP.  

Portanto, a despeito de termos cancelado motivadamente o Retomadas pelas  circunstâncias anteriormente expostas — o que tornou inviável a conclusão do trabalho  curatorial iniciado no âmbito do MASP e impediu a execução do programa contratual  originalmente previsto —, o Museu propõe reter os direitos de propriedade intelectual  do trabalho realizado até aqui. 

Neste contexto, quando vem a público sugerir o retorno do Retomadas, o MASP performa uma posição ética que oculta suas contingências legais: o fato de que, se não  realizarmos a exposição no Museu, não poderemos realizá-la em lugar algum. Neste  momento, o Retomadas encontra-se inevitavelmente atrelado ao MASP. 

É por isto que, nesta carta, gostaríamos de propor uma sequência de gestos que  possam devidamente reparar as contradições que cercam as atuais propostas  autocríticas do MASP. Temos a intenção de avançarmos, juntos, na direção de um  processo institucional crítico, colaborativo e transformador. 

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Atendendo ao princípio ético de que reparações devem ter suas medidas  recomendadas pelos sujeitos aos quais se destinam, as propostas abaixo foram  elaboradas por nós após diálogo coletivo com o Movimento dos Trabalhadores Rurais  Sem Terra (MST), os fotógrafos André Vilaron e Edgar Kanaykõ Xakriabá e o Acervo João  Zinclar. 

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1. DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. Diante do que expusemos acima, propomos ao  Museu de Arte Assis Chateaubriand que não detenha os direitos autorais  patrimoniais referentes ao Retomadas, assegurando que, na condição de suas  curadoras, tenhamos nossa propriedade intelectual reconhecida pelo MASP em nossos distratos e/ou contratos. 

2. DO COPYLEFT. Uma vez reconhecidos, pelo MASP, os nossos direitos autorais patrimoniais, propomos tornar o Retomadas um trabalho copyleft, retirando  quaisquer barreiras à sua utilização, difusão ou modificação. Como esta é uma luta  coletiva, não nos interessa submeter as Retomadas às normas de proteção de  propriedade intelectual.  

3. DAS RETOMADAS COLETIVAS NO ÂMBITO DE HISTÓRIAS BRASILEIRAS. Tornar o  Retomadas um trabalho criativo copyleft é um gesto que tem a intenção de ampliar o referido núcleo curatorial para além da exposição e das circunscrições  institucionais do MASP.  

Trata-se do desejo de expandir a escuta e a dimensão participativa, colaborativa,  inclusiva e democrática não só deste núcleo –– como também, consequentemente,  de Histórias Brasileiras.  

Propomos que o Retomadas se transforme numa chamada aberta que, organizada  junto ao MASP, convide pessoas, organizações, escolas (como as do Movimento dos  Trabalhadores Rurais Sem Terra), aldeias, espaços culturais, assentamentos,  universidades, ocupações, publicações, ateliês, perfis de Instagram, famílias e  quaisquer outras formas de organização social a se apropriarem dessa luta que é  necessariamente coletiva e, assim, paralelamente a Histórias Brasileiras, produzirem, em seus próprios territórios e de acordo com seus próprios interesses,  suas versões do Retomadas, evidentemente sempre à luz da legalidade e com pleno  respeito aos direitos humanos. 

Integrando a dimensão coletiva do Retomadas, o Movimento dos Trabalhadores  Rurais Sem Terra convocará outros movimentos sociais e públicos diversos para um  ato cultural a ocorrer no vão livre do MASP na ocasião da inauguração de Histórias  Brasileiras, ocupando o espaço público do Museu com mais narrativas, memórias e  expressões artísticas das retomadas. 

4. DE UMA PUBLICAÇÃO ONLINE E COPYLEFT. Propomos que seja editada uma  publicação online com a documentação do processo coletivo de criação/realização  das várias versões das Retomadas, Brasil afora, bem como com textos e outras  contribuições acerca desta experiência de crítica e autocrítica curatorial e  institucional.  

Propomos que, em colaboração com a curadoria do Retomadas, a publicação seja  coeditada pela Editora Expressão Popular (MST) e pelo MASP, sublinhando o  compromisso coletivo de registrar e, principalmente, de aprofundar as reflexões e aprendizados precipitados por esta experiência.  

A publicação pode, como já indica a nota do Museu, ser enriquecida por um ciclo de  debates/seminário com pessoas envolvidas no processo da exposição/convocação.   

5. DO ACESSO GRATUITO AO RETOMADAS. Como já mencionado anteriormente,  aceitamos a proposta do MASP de voltar a realizar o Retomadas no contexto de  Histórias Brasileiras.  

Mais adiante, sugerimos que, durante o período desta exposição, o Museu possa suspender sua usual cobrança de ingressos como exercício de um dos princípios  ético-políticos das retomadas: a redistribuição dos territórios, capitais e privilégios  historicamente concentrados nas mãos das elites. 

Se puder interromper a cobrança de ingressos ou, alternativamente, ampliar os dias  de gratuidade durante Histórias Brasileiras, ao salvaguardar acesso gratuito a seus espaços, exposições e demais atividades, o MASP certamente reforçará seu  compromisso com a democratização, a inclusão e a diversidade. 

6. DA AQUISIÇÃO DAS FOTOGRAFIAS. André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e o Acervo João Zinclar – autores e  detentores dos direitos das imagens anteriormente vetadas pelo MASP no núcleo  Retomadas – optaram pela não incorporação de suas fotografias ao acervo do  Museu mediante a compra das mesmas. 

Em vez disso, propõem que o MASP possa reverter a intenção de aquisição num  projeto de amplo compartilhamento dessas imagens, a serem impressas em  formato de pôster e distribuídas gratuitamente para os visitantes de Histórias  Brasileiras.  

Esta proposta tem a intenção de manter o compromisso social e ético dessas  fotografias, que não foram realizadas na intenção de se inserir nas dinâmicas do  mercado de arte, mas de cumprir um papel político na luta pela reforma agrária e  pela demarcação dos territórios indígenas. 

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Acolhendo com satisfação a iniciativa autocrítica do Museu e sua disposição a elaborar  medidas reparadoras, com as propostas aqui apresentadas, intencionamos cooperar  com o anseio do MASP de construir “coletivamente, a partir do diálogo aberto,  empático e colaborativo”, práticas que corroborem para que a instituição reveja seus  métodos e relações de trabalho e que, assim, caminhe na direção de efetivamente tornar-se mais “plural, inclusivo e democrático”. 

Estamos à disposição para, em diálogo, avançar na concepção dessas e/ou outras  propostas junto ao MASP com o objetivo de viabilizarmos sua execução e, dessa forma,  assegurar que esta experiência possa cumprir seu papel político-pedagógico não só  perante a instituição, como também junto às muitas forças e perspectivas nela  implicadas. 

Cordialmente, 

Sandra Benites e Clarissa Diniz