Primeira curadora indígena de um museu de arte no Brasil, a antropóloga Sandra Benites pediu demissão do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O motivo é o fato da instituição ter vetado um conjunto de obras relacionadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Masp) que seria exibido na exposição "Histórias Brasileiras", prevista para julho.
As obras - cartazes históricos e fotografias dos artistas João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ - estariam em exposição no núcleo "Retomadas" da mostra, a maior do Masp neste ano. Os artistas envolvidos foram avisado do veto por Sandra e Clarissa Diniz, que também assina o projeto, e elas, após a decisão do museu, decidiram não participar mais da exposição.
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O Masp justificou o veto com o argumento de que o prazo estipulado para o empréstimo das obras teria sido extrapolado. As curadoras, no entanto, dizem que não foram avisadas pela instituição sobre essa data limite.
"Só quando houve a recusa das seis fotografias de André Vilaron e Edgar Kanaykõ, em 14 de abril, soubemos que o MASP havia fixado o prazo fatal de entrega para o dia 31 de março. Jamais fomos comunicadas deste termo final quando o prazo estava em curso", escreveram Sandra e Clarissa em nota divulgada no domingo (15), rebatendo as justificativas do museu.
"É por entendermos que curadorias e instituições devem ser responsáveis, cuidadosas e comprometidas, por acreditarmos profundamente na posição política evocada pelo Retomadas e por nos identificarmos integralmente com os pressupostos éticos que o sustentam, que não podemos naturalizar o que seria a contradição de excluir, do núcleo, os sujeitos e movimentos históricos que perfazem as retomadas sob a alegação de impedimentos técnicos", afirmam ainda.
Ao jornal Folha de S. Paulo, Sandra Benites disse que não se sente mais confortável trabalhando no museu. Esse seria o primeiro projeto que assinaria em dois anos trabalhando na instituição. "Para mim não faz sentido que eu continue sem poder ampliar o debate", declarou.
Confira abaixo a íntegra da nota das curadoras sobre veto
Em razão da publicação da “nota sobre a exposição histórias brasileiras”, veiculada ontem pelo MASP em seu sítio na internet com justificativas sobre o cancelamento do núcleo Retomadas, nós, curadoras do referido núcleo, vimos a público exercer nosso direito de resposta e expor circunstâncias determinantes ao cancelamento de “Retomadas”, omitidas ou distorcidas na manifestação da instituição.
Sobre os marcos indicados em contrato
O Museu afirma que a exclusão de “6 obras de fotógrafos ligados ao Movimento Sem Terra – MST” ocorreu porque foram “solicitadas pelas curadoras ao departamento de produção do museu, muito fora dos prazos do cronograma estabelecido em contrato”.
A nota afirma que os prazos, teoricamente “no mínimo de 6 meses (para museus brasileiros) e 4 meses (para galerias, coleções particulares e artistas) já teriam sido flexibilizados” e que “restrições são comuns no processo de produção e impediram também que outros curadores da mostra solicitassem algumas obras em seus respectivos núcleos.”
O primeiro equívoco da nota envolve os marcos do calendário genérico originalmente previsto no contrato, pois não havia a mencionada distinção de 6 meses para museus e 4 para galerias, coleções particulares e artistas nacionais. O único marco estabelecido para empréstimos nacionais era de 6 meses de antecedência.
A exposição tem “previsão de inauguração em 1 de julho de 2022”, como anuncia a nota divulgada ontem pelo MASP. Portanto, caso o MASP estivesse efetivamente praticando os marcos do contrato, o prazo teria expirado em 1º de janeiro de 2022.
No entanto, nós fomos convidadas para ir ao MASP para reuniões presenciais de apresentação e aprovação do núcleo “Retomadas” na segunda metade de janeiro: portanto, após o fim do prazo teoricamente fatal. Na ocasião, recebemos textualmente elogios do diretor artístico da instituição.
A prova definitiva de que os marcos temporais do contrato não guardavam qualquer relação com a realidade está no prazo estabelecido para empréstimos de instituições internacionais, que deveria ocorrer em até 12 meses antes da inauguração da exposição. Como a exposição será inaugurada em 1 de julho de 2022, o prazo para a requisição destes empréstimos venceria em julho de 2021.
Contudo, ocorre que o contrato de Clarissa Diniz, por exemplo, foi assinado apenas em agosto de 2021: após, portanto, o vencimento daquele prazo, o que revela não só a impossibilidade material de execução do cronograma, bem como demonstra como o mesmo se dissociava da realidade.
Sobre a não-comunicação do cronograma de “Histórias Brasileiras”
A despeito do retardamento global do projeto, até a recusa do Museu em aceitar a completa representação das retomadas que intitulam o núcleo que propusemos, nunca havíamos recebido um e-mail ou documento com o efetivo cronograma de Histórias Brasileiras.
Não fomos copiadas em e-mails para a equipe curatorial, nem convocadas para reuniões que tratassem do assunto. Como curadoras adjunta e convidada — portanto, alheias ao cotidiano do escritório do MASP —, não fomos incluídas em quaisquer comunicados desta natureza.
Só quando houve a recusa das 6 fotografias de André Vilaron, Edgar Kanaykõ e, em 14 de abril, soubemos que o MASP havia fixado o prazo fatal de entrega para o dia 31 de março. Jamais fomos comunicadas deste termo final quando o prazo estava em curso.
Como ficamos sem um calendário para guiar nosso trabalho, passamos a atender a demandas pontuais que nos chegavam de forma intermitente por meio da assistência de pesquisa da instituição ou da direção do MASP: todas sempre cumpridas com prontidão.
Preocupadas com a inexistência de uma comunicação direta por parte da equipe de produção do Museu, solicitamos à diretoria artística uma reunião com a equipe, o que aconteceu no dia 24 de março. Nesta reunião, quando indagamos sobre qual cronograma deveria ser seguido, fomos informadas de que o calendário de produção de Histórias Brasileiras estava “desatualizado” e, por isso, não seria compartilhado conosco na reunião, mas referido “por alto”. Em função de nossa demanda, durante a reunião, a equipe de produção mencionou a lógica do cronograma, mas não nos comunicou de prazos efetivos.
Diante do exposto, solicitamos o envio, por e-mail, de um cronograma que pudesse orientar nossas ações. O cronograma nunca foi enviado e, por isso, seguimos nosso trabalho de pesquisa com o MST e seus fotógrafos, iniciado no começo de fevereiro mediante autorização e ciência do MASP. O contato com esses sujeitos/movimentos, realizado com o acompanhamento do Museu, foi iniciado, portanto, cinco meses antes da abertura prevista de Histórias Brasileiras.
No dia 13 de abril, recebemos e-mail do interlocutor designado pela instituição para acompanhar o desenvolvimento do Retomadas, o assistente de pesquisa do Museu, informando que, a partir dali, haveria uma semana para fecharmos os pedidos relativos ao MST.
No dia seguinte, 14 de abril — portanto, ainda no começo do prazo estipulado —, respondemos o e-mail com a indicação de todo o material que representaria as retomadas: peças físicas e digitais advindas do acervo do MST e fotografias digitais de André Vilaron, João Zinclar e Edgar Kanaykõ. O prazo estipulado e informado pela instituição foi, portanto, integralmente atendido.
Para nossa surpresa, a equipe de produção informou que o conjunto das peças não poderia ter sua solicitação de empréstimo formalizada pelo MASP porque o prazo teria expirado, embora jamais tivéssemos sido informadas a seu respeito. Não houve um e-mail, uma ligação ou uma mensagem nos informando deste suposto prazo.
Exigir o cumprimento do cronograma seria, portanto, nos atrelar a uma obrigação impossível, pois o desconhecíamos. Por sua vez, impor a nós as consequências por este suposto descumprimento de prazo, com a restrição à exibição de materiais centrais ao desenvolvimento do Retomadas, seria sujeitar o núcleo à desconfiguração conceitual, ética e política por omissão da instituição em nos comunicar o prazo final para a conclusão da pesquisa, realizada durante meses junto ao MST e seus fotógrafos.
A nota do MASP desconsidera estas circunstâncias e a isonomia que deveria ter sido dispensada no tratamento de todos os núcleos da mostra. Afinal, ao alegar que “outros curadores também tiveram que cancelar empréstimos por esse mesmo motivo [o descumprimento de prazos institucionais]”, o MASP pretende equiparar cancelamentos eventualmente provocados pela extrapolação do cronograma à restrição infligida ao Retomadas, fruto da abrupta recusa de material pelo vencimento de prazo que desconhecíamos ou do arrependimento da instituição em estendê-lo, após reconhecer o “equívoco” na comunicação, como explicado abaixo.
Sobre a intransigência institucional
Diante do impedimento anunciado pelo Museu, iniciamos uma negociação com sua equipe de produção que, depois de reconhecer, que nos foi passada de “maneira equivocada uma data limite para recebimento do material do MST”, informou que seguiria somente com o empréstimo de metade do conjunto — os cartazes e outros documentos vindos do arquivo do MST —, excluindo, portanto, todas as fotografias.
Reiteradas vezes, buscamos explicar ao MASP a importância da manutenção da totalidade do conjunto. As tentativas foram em vão. O Museu se manteve irredutível e não permitiu a formalização do empréstimo das 6 fotografias, apesar de a inclusão das referidas imagens sequer envolver transporte ou seguro, pois se tratava de cópias de exibição produzidas mediante a impressão de arquivos digitais.
Defrontadas com a intransigência da instituição — que reconheceu o “equívoco” institucional, mas optou por incluir apenas os cartazes, deixando de fora as fotografias que compunham o coração do Retomadas —, nos vimos impelidas a cancelar o núcleo pela impossibilidade de ele vir a representar respeitosa e responsavelmente os processos políticos que justificam sua proposição e existência.
Somos curadoras experientes, com uma trajetória de trabalho institucional e realização de exposições de grande porte, todas devidamente acompanhadas por cronogramas e um constante diálogo com suas respectivas equipes de produção.
É por entendermos que curadorias e instituições devem ser responsáveis, cuidadosas e comprometidas, por acreditarmos profundamente na posição política evocada pelo Retomadas e por nos identificarmos integralmente com os pressupostos éticos que o sustentam, que não podemos naturalizar o que seria a contradição de excluir, do núcleo, os sujeitos e movimentos históricos que perfazem as retomadas sob a alegação de impedimentos técnicos.
Sandra Benites e Clarissa Diniz
15 de maio de 2022