PERSPECTIVA CRÍTICA

Inteligência Artificial produz "monstruosidades éticas", diz Pierre Lévy

Filósofo avalia que estamos longe de uma tecnologia capaz de produzir "verdadeiro conhecimento ou entendimento do mundo"

Créditos: Reprodução / Twitter
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"O ano de 2022 viu o triunfo do que é chamado de IA generativa". Com esta frase o filósofo e sociólogo francês especialista em temas ligados à comunicação e tecnologia inicia uma avaliação sobre o estágio de desenvolvimento das tecnologias de Inteligência Artificial (IA) no atual momento.

De acordo com o coordenador científico do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de GoiásAnderson da Silva Soares, “Inteligência artificial é um termo utilizado para se referir à capacidade da máquina de fazer algumas tarefas ditas ‘inteligentes’ ou mais complexas, que envolvem um certo raciocínio em cima de informações. Até poucos anos atrás, a gente só conseguia fazer a IA classificar ou rotular um dado, por exemplo ‘essa foto é o rosto do Anderson, sim ou não?’ Já as IAs generativas constroem conteúdos e dados e não apenas os rotulam. Ou seja, eu peço para a IA construir a imagem de um rosto para mim”.

Avanços notáveis

Ao destacar o desenvolvimento de IA generativa neste ano, Lévy diz que temos modelos treinados a partir de quantidades massivas de dados capazes de produzir textos ou imagens "de qualidade incrível", exemplificando com programas como ChatGPT (textos), DALLE2 e Stable Diffusion (ambos produzem imagens). "É possível controlar a saída por meio de 'prompts' e, cada vez mais, por um diálogo que permite ao usuário enviar feedback a esses sistemas", continua, considerando que há "avanços notáveis" na área de software e reconhecendo que há inúmeras aplicações possíveis, "especialmente no campo da criatividade aumentada e padrões de reconhecimento".

O intelectual critica, entretanto o uso do termo “inteligência artificial” para se referir a esses sistemas. "Basta interagir um pouco com o ChatGPT para perceber que o modelo realmente não entende o que é contado, nem os textos que produz: erros de lógica ou aritmética elementar, erros factuais, monstruosidades éticas e outras 'alucinações' (com as quais os usuários do Twitter se divertem) sublinham os limites da abordagem puramente estatística", dispara.

Imagem: Reprodução / Twitter

Automação

Lévy acredita que essas novas ferramentas "anunciam uma nova onda de automação", com consequências econômicas e culturais que ainda sequer podem ser previstas, pela sua capacidade de "sintetizar e mobilizar o conteúdo de enormes bases de dados", o que as torna capazes de "aumentar ou substituir o trabalho humano".

Mas termina sua breve análise em tom novamente crítico: "estamos longe de uma inteligência autônoma capaz de um verdadeiro conhecimento ou compreensão do mundo. E parece que mais dados, mais parâmetros (número de conexões internas ao modelo) e mais poder de computação não são capazes de remediar a raiz do problema", conclui o sociólogo.

Inteligência coletiva

Pierre Lévy é autor do livro "Inteligência Coletiva", obra em que parece depositar esperança na construção de uma sociedade em que os saberes seriam distribuídos por toda parte, valorizados e coordenados em tempo real, de maneira a resultar em uma mobilização de competências voltadas para desenvolver o conhecimento entre as pessoas. Esse novo estágio do desenvolvimento social só seria possível de ser alcançado com o uso da internet, como ferramenta para a construção de um novo padrão sociotécnico, com potencial de promover uma renovação dos laços sociais por intermédio do conhecimento. Ele chegou a argumentar em favor de uma “hipótese ‘utópica’ de uma democracia direta acompanhada por computador – ou uma ágora virtual”.

No entanto, o francês não deixa de apontar, em sua obra, que esse era um dos caminhos possíveis de serem construídos para uma tecnologia que ainda se encontrava em sua infância. Mas alerta que a internet também poderia, sem a interferência coletiva e consciente, resultar no aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais, na imposição da supremacia do consumo e da sociedade do espetáculo. Ele reconhecia que as potencialidades positivas da internet dependiam de: “decisões técnicas, [da] adoção de normas e regulamentos, [das] políticas tarifárias”. 

Raiz do problema

Embora na análise apresentada pelo Twitter Lévy não aponte a "raiz do problema", é possível suspeitar que ela esteja na própria condição e contexto do desenvolvimento de tais tecnologias, produzidas para acelerar a produção, circulação e consumo de mercadorias (dos mais variados tipos, cada vez com menos suportes físicos), longe de contar com uma "interferência coletiva consciente", como propõe o francês, para desenvolver a renovação dos laços sociais de forma promover a superação de chagas listadas por ele, como desigualdades sociais ou supremacia do consumo. Seria esta raiz o próprio sistema capitalista?