LITORAL DE SP

Soldado e Sargento da Rota são réus por tampar câmeras e matar homem em Guarujá-SP

Crime ocorreu em 30 de julho durante a Operação Escudo, celebrada pelo governador Tarcísio de Freitas; Caso condenados, PMs podem ficar de 12 a 30 anos presos

Homens da Rota durante a Operação Escudo.Créditos: Reprodução/Alma Preta
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O sargento Eduardo Freitas de Araujo e o soldado Augusto Vinicius Santos de Oliveira das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), grupo de elite da Polícia Militar de São Paulo, foram tornados réus na última terça-feira (19) por tamparem as câmeras corporais e assassinarem Rogério de Andrade Jesus, de 50 anos, dentro da sua casa em Guarujá, durante a Operação Escudo. A execução ocorreu em 30 de julho na cidade do litoral paulista.

O Tribunal de Justiça de São Paulo acatou a acusação do Ministério Público que aponta o sargento como aquele que disparou contra a vítima e o soldado como o responsável por tampar as câmeras corporais. De acordo com o MP, a obstrução da câmera, além de não registrar o crime, também deu maior margem para que a dupla pudesse “forjar a existência de uma arma de fogo”.

De acordo com informações do site Ponte, os agentes da Rota agora estão formalmente acusados de homicídio qualificado por motivo torpe (desprezível), por terem impossibilitado quaisquer chances de fuga ou defesa da vítima. Além disso, também constam como agravantes o abuso de poder e a violação do dever. Caso condenados, podem ficar de 12 a 30 anos presos.

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Mesmo com a recomendação do MP de que fossem totalmente afastados das suas funções, a dupla foi recolhida apenas das ruas e agora realiza trabalhos administrativos para a corporação. Estão proibidos de irem ao Guarujá a trabalho e de terem qualquer contato com testemunhas ou vítimas. Também devem manter pelo menos 300 metros de distância do local dos fatos, bem como dessas pessoas.

Aos fatos

Os promotores do MP reconstituíram, em sua apuração, o passo a passo da execução. Por volta das 7h30 da manhã daquele 30 de julho, os agentes faziam uma ronda no Morro do Macaco, quando o sargento se dirigiu à residência da vítima. Conversou com um vizinho, que disse não conhecer o morador da casa, e então se posicionou diante do imóvel, por cerca de um minuto, tentando ver o que havia ali dentro. O soldado Oliveira estava logo atrás e havia ainda mais dois soldados na retaguarda, que ficaram de fora do processo uma vez que o MP entendeu que não participaram da execução.

“Passados cerca de 28 segundos, Eduardo de Freitas Araújo, sem qualquer fato prévio que ensejasse imediata resposta e sem adotar qualquer outra forma para assegurar que o morador do local não se evadiria, ainda que ausente qualquer indício de flagrante delito, efetuou um disparo de fuzil, que atingiu a região torácica anterior da vítima, ocasionando a sua morte”, narram os promotores a partir da análise das câmeras corporais.

Após os disparos, o sargento entrou na casa da vítima enquanto o soldado tampava a câmera, colocando-a em uma posição que não filmava o superior hierárquico. Nesse momento, o réu simula a apreensão de uma arma supostamente usada pela vítima e a cobertura das câmeras segue em vigor.

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No Boletim de Ocorrência, o sargento afirma que viu o “indivíduo armado com uma pistola e ordenou que largasse a arma, mas ele não largou”. Por essa suposta razão, seu fuzil 762 foi disparado da janela da casa direto no tórax da vítima.

“O caso está sendo apurado por meio de um inquérito policial instaurado pela Polícia Civil, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM) e procedimento investigatório do Ministério Público, que decorre da força-tarefa constituída para acompanhar a Operação Escudo. A pasta entende que a promotoria exerce seu papel legal de apresentar uma denúncia-crime mesmo que baseada em indícios, que podem ou não ser confirmados ao final do processo legal. Contudo, é importante salientar que a própria força-tarefa do MP já se pronunciou contrária a outras denúncias contra policiais que participaram da mesma Operação Escudo.A pasta reforça que a existência da denúncia não desqualifica a operação, que em 40 dias prendeu 976 suspeitos, dos quais 388 eram procurados da Justiça, apreendeu 119 armas e quase uma tonelada de drogas”, diz nota da Secretaria de Segurança Pública divulgada para a imprensa.

A Operação Escudo

A Operação Escudo começou após o assassinato do soldado Patrick Reis (30), da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), grupo de elite da PM paulista. Ele foi baleado no tórax enquanto fazia patrulhamento na comunidade de Vila Zilda, no Guarujá. Desde 1999 um homem da Rota não era morto em serviço.

A partir daí começou uma verdadeira carnificina recheada de ilegalidades. A ação ostensiva da PM jamais escondeu que se tratava de uma vingança contra as “comunidades que abrigam o crime organizado”, como se a comunidade tivesse essa escolha. 28 pessoas foram executadas entre 28 de julho e 5 de setembro enquanto a operação durou, ao mesmo tempo em que os suspeitos pelo assassinato do soldado Reis eram capturados e levados ao tribunal.

O Instituto de Criminalística da Polícia Científica de São Paulo realizou em agosto um exame para detectar a presença de resíduos químicos provenientes do disparo recente de arma de fogo nas mãos de Ericksn David da Silva, o “Deivinho”, acusado pela Polícia Civil de ter atirado e matado o soldado da Reis. O resultado do chamado Exame Pericial por Residuografia em Tiras nas mãos do acusado, no entanto, deu negativo.

Retomada da operação

Três dias após o encerramento da Operação Escudo, em 8 de setembro, o sargento Gerson Antunes Lima, de 55 anos e aposentado da PM desde 2019, estava só de bermuda e chinelo, varrendo a calçada da sua residência, quando foi morto a tiros por dois homens em uma moto.

No dia seguinte, foi a vez do PM Lucatio de Oliveira Santos sofrer um atentado a tiros na porta de casa. Os casos, e sobretudo a morte de Lima, fizeram com que as operações de patrulhamento nas comunidades da região, à exemplo da recente Operação Escudo, voltassem a escalar a partir de 9 de setembro.

A partir daí, uma morte foi confirmada em suposta troca de tiros com a PM no domingo (10), atualizando o número de vítimas para 29. Na ocasião, uma equipe do 2º Batalhão de Ações Especiais (Baep) fazia um patrulhamento quando foi atacada. A troca de tiros feriu um agente e quatro pessoas que passavam pela região. Uma mulher de 22 anos não resistiu aos ferimentos e morreu.

Nesta terça-feira (12) um homem foi morto a tiros no Jardim Virgínia, no Guarujá, em novo suposto confronto com policiais. Não há maiores informações sobre o caso.

Ação da PM é comparada a de um esquadrão da morte

No dia que a operação foi oficialmente encerrada, em 5 de setembro, a Defensoria Pública comparou a ação da PM a de um esquadrão da morte, ou uma milícia. A operação foi a mais letal da história da PM paulista depois do Massacre do Carandiru, que deixou pelo menos 111 mortos em 1992.

Por conta disso, a Defensoria Pública de São Paulo e a organização da sociedade civil Conectas Direitos Humanos ingressaram na mesma data com uma ação civil pública. O objetivo é que a Justiça obrigasse o governo de São Paulo a instalar câmeras corporais nos policiais que atuam na Operação Escudo. Há relatos de execuções sumárias, tortura, invasão de domicílios, destruição de moradias e outros abusos e excessos das forças de segurança, de acordo com o Conselho Nacional de Direitos Humanos.

"Contudo, em apenas uma ocorrência há menção de um policial militar ferido e nenhuma outra traz qualquer referência a viaturas atingidas por disparo de fogo", registrou a Defensoria.

Os defensores relatam na ação apresentada uma série de evidências de abuso de poder e uso desproporcional da força por PMs deslocados para atuarem na baixada. "A postura adotada pela administração pública estadual em relação ao uso das câmeras corporais durante a Operação Escudo reforça o cenário de violações de direitos", diz o documento.

A Defensoria afirma que as respostas dadas pelo governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) aos questionamentos sobre a operação reforçam que os órgãos de segurança se pautaram por uma "vingança institucional" pela morte do PM da rota Patrick Bastos Reis, de 30 anos, alvejado por tiros no Guarujá no dia 27 de julho. E não por uma atuação racional e técnica.

"Importante destacar que esse modus operandi não é novo e remonta ao 'Esquadrão da Morte', como relatado por [jurista] Helio Bicudo ao expor como a morte de um agente de segurança instaurou uma lógica de vingança institucional [nos anos 1960] que 'despertou nova onda de histeria na Secretaria da Segurança Pública, de tal modo que voltou a soar a promessa de que, a cada investigador morto, dez marginais pelo menos deviam pagar o crime com a própria vida'", afirma a Defensoria.

O órgão afirma que a análise dos boletins de ocorrência relacionados aos casos de morte por intervenção policial ocorridas entre 29/08/2023 e 02/09/2023 indicam "a padronização de um comportamento que excede os parâmetros legais sobre o uso da força por agentes de segurança. Isso é evidenciado, por exemplo, nos casos em que a abordagem foi justificada por uma 'atitude suspeita', pelo porte de uma mochila, por um 'volume na cintura' ou, ainda, por andar apressadamente ou em direção contrária ao avistar policiais militares e/ou suas viaturas".

Massacre pune a comunidade

Um morador da Vila Baiana, no Guarujá, fez um relato do cotidiano da ‘quebrada’ nessa última semana ao jornalista Matheus Pichonelli, do Uol. Ele afirma que após as 22 horas era comum que as pessoas estivessem nas ruas confraternizando, mas que após o início da Operação Escudo e a subsequente matança, as ruas estão completamente vazias após esse horário.

“As pessoas têm medo de descer o morro e não voltar. Tem sido assim desde o dia em que mataram o policial militar da Rota aqui perto, na quinta-feira (27). Quando você sai de casa os policiais já perguntam quem você é, se é morador e por que está descendo. Tem vizinho que chega depois das 22 horas do trabalho e liga para casa do ponto de ônibus. As mulheres então descem com as crianças para buscá-lo”, declarou.

O homem, que obviamente não foi identificado, relata que também foi vítima de uma humilhação decorrente do massacre. Na sexta-feira (28) policiais bateram à porta da sua casa, invadiram o domicílio e, quando perceberam que ele tinha uma passagem por tentativa de roubo anos atrás, o ameaçaram. Sua filha de 2 anos presenciou a cena.

“Meu irmão começou a filmar e um PM muito alterado quis tomar o aparelho dele e o agredir. Minha mãe tem 51 anos e pediu para eles terem calma porque ela é especial. Disse que era da igreja e que meu irmão sofre com ataques epiléticos” relatou.