MACHISMO E RELIGIÃO

Nasce um Exército: A Ascensão dos Legendários

Nesta segunda reportagem, exploramos a origem do movimento Legendários, o discurso central sobre a “crise da masculinidade” e como o grupo rapidamente ganhou força ao unir religião e coaching

Encontro dos Legendários
Nasce um Exército: A Ascensão dos Legendários.Encontro dos LegendáriosCréditos: Reprodução / Redes sociais LegendáriosBR
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Num ginásio lotado em Balneário Camboriú - SC, entre luzes de LED, som alto e pregações inflamadas, uma multidão de homens se ajoelha ao som de uma oração que mais parece um juramento militar. O grito final ecoa como mantra. As redes sociais registram o momento em tempo real. Ali, mais do que um culto, está em cena uma cerimônia de iniciação.

Esse é o cenário típico dos encontros Legendários — movimento que se apresenta como resposta à “crise da masculinidade contemporânea” e que tem arrebatado milhares de homens em todo o Brasil com uma fórmula explosiva: fé evangélica conservadora, discurso motivacional estilo coaching e uma estética de exército espiritual. Desde 2017 no Brasil, a ascensão dos Legendários tem sido rápida e barulhenta, principalmente entre jovens, celebridades e influenciadores digitais.

Mas o que há, de fato, por trás dessa nova cruzada masculina?

Fundado em 2015 na Guatemala pelo pastor Chepe Putzu, o Movimento Legendários Global tem ganhado força em diversos países, especialmente no Brasil. Putzu, líder da Igreja Casa de Dios há mais de duas décadas, é administrador de empresas, mestre em marketing e autor do livro La Ruta del Cazador: Guia Esencial para Hombres con Hambre de Conquista, obra que reúne os principais fundamentos do grupo.

A proposta do movimento é resgatar a figura simbólica do “herói caçador” dentro da estrutura familiar e formar homens que se mantenham “inquebrantáveis diante do pecado, mas quebrantados diante de Deus”. Desde sua criação com apenas 109 integrantes, o Legendários se expandiu para 13 países e já conta com mais de 56 mil participantes.

O Brasil, onde o movimento chegou em 2017, abriga hoje o segundo maior contingente de membros do mundo. O grupo tem se estruturado com encontros presenciais, formações e forte presença nas redes sociais. Em suas publicações, o movimento reforça a importância da fé e da disciplina religiosa, incentivando que os membros frequentem a igreja regularmente, especialmente aos domingos. “Legendário, hoje é dia de comunhão na fé com nossos irmãos e de buscarmos ao Legendário #001”, diz uma das mensagens divulgadas no perfil oficial, em referência a Jesus Cristo.

O marketing da crise masculina

O discurso que sustenta o Legendários é direto: o homem perdeu seu papel tradicional — seja na igreja, na família ou na sociedade. A culpa, segundo os líderes, seria do “avanço de ideologias feministas, da cultura do vitimismo e da ausência de valores cristãos”. O movimento, portanto, propõe restaurar a autoridade masculina como vontade divina.

Essa retórica tem forte apelo entre homens jovens que cresceram em lares desestruturados, sem figuras paternas sólidas ou em ambientes urbanos hostis. O movimento consegue transformar inseguranças em missão espiritual. O fracasso emocional vira falta de "armadura espiritual". A vulnerabilidade é tratada como pecado. É o coaching com Bíblia. O formato lembra um treinamento militar, mas com conteúdo religioso. Os participantes são expostos a “desafios de fé” e ouvem mensagens sobre paternidade, autoridade e domínio espiritual. É a "teologia do macho-alfa".

Um show de fé (e negócios) para o velho patriarcado

Por trás do fervor espiritual, há uma estrutura altamente profissional. Os eventos contam com roteiros, iluminação de cinema, merchandising e equipes de mídia social treinadas. Há linhas de roupas, bonés, etc. Tudo é pensado para consolidar a imagem do homem Legendário: viril, forte, cristão, líder. O pacote completo.

Apesar do apelo jovem e da linguagem moderna, o movimento se ancora em ideias antigas: o homem como cabeça da família, a mulher como ajudadora, o mundo como campo de batalha espiritual. Críticos apontam que, longe de oferecer uma saída para as crises masculinas, o Legendários reforça estereótipos que excluem, silenciam e até violentam. É um cristianismo performático, que transforma discipulado em produto e masculinidade em espetáculo, onde ao invés de ensinar os homens a lidarem com seus sentimentos, os empurram de volta para uma masculinidade rígida, autoritária e emocionalmente reprimida.

O que vem pela frente?

O sucesso do Legendários parece longe de arrefecer. Com cada vez mais seguidores, alianças com políticos conservadores e a adesão de celebridades, o movimento está espalhado por vários países e continua investindo pesado no seu “crescimento”.

Mas a pergunta que permanece é: será que, ao tentar resgatar uma masculinidade perdida, o movimento está apenas mascarando velhas formas de dominação sob nova roupagem?

Na próxima reportagem da série, vamos mergulhar na linguagem do coaching e na espiritualidade de performance promovida pelo movimento — e como isso pode afetar a saúde mental e a espiritualidade de seus seguidores.

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