"Homem que é homem lidera, protege, provê." A frase, dita em um tom grave, ecoa no auditório lotado. No palco, luzes teatrais, uma cruz iluminada ao fundo e um telão onde aparece a palavra “Legendários” em letras garrafais. A plateia, quase toda masculina, responde com gritos e punhos erguidos “AHU! AHU!”. Um grito quase gutural que forma um acróstico significando “Amor, Honra e Unidade” segundo o próprio grupo. A cena lembra mais um comício ou show de rock cristão do que um culto tradicional. Mas ali, o que está em jogo é outra coisa: o resgate da chamada "masculinidade bíblica".
A partir de hoje, durante esta semana, a Fórum traz uma série de matérias sobre o movimento “Legendários” e seus vários desdobramentos, desde seu início na Guatemala, sua aproximação do universo “coach” no Brasil, sua espiritualidade doentia e atravessada por um viés político ultraconservador e a supervalorização de uma masculinidade baseada na força, o que termina reforçando os estereótipos de violência e dominação do homem sobre a mulher.
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Os “Legendários” se apresentam como uma cruzada contra aquilo que seus líderes chamam de “crise do homem moderno”: homens frágeis, sem propósito, desorientados em meio a um mundo que teria, segundo eles, “feminilizado” a sociedade. A resposta? Uma mistura de doutrina evangélica conservadora, discurso motivacional estilo coaching, estética militarizada e, mais recentemente, pitadas de política reacionária.
O tripé: religião, coaching e ideologia
O movimento que ganhou visibilidade principalmente depois da participação de famosos e influenciadores digitais como o ex-BBB Eliezer, o humorista Tirulipa e o investidor Thiago Nigro, mistura linguagem bíblica com jargões de autoajuda. Termos como “alfa espiritual”, “domínio masculino” e “guerra interior” são comuns nos encontros e materiais online. A Bíblia aparece lado a lado com livros de Jordan Peterson e manuais de treinamento militar.
A proposta encontra eco em jovens e adultos desiludidos com a ausência, de acordo com as principais lideranças, de referências masculinas, especialmente em contextos urbanos e familiares instáveis. Mas quando se vê com mais profundidade, o que se enxerga é que, ao tentar “restaurar” a masculinidade, o movimento pode estar promovendo justamente seus piores estereótipos: agressividade, autoritarismo, aversão ao diálogo e submissão da mulher.
Celebridades no front
Parte da força do movimento está no seu alcance entre figuras públicas. Ex-jogadores de futebol, atores e até cantores sertanejos têm aderido à estética Legendária. Perfis nas redes sociais com milhões de seguidores promovem os encontros e divulgam frases de impacto como “homem não chora, ora” ou “em vez de terapia, faça jejum”. A adesão de famosos atrai seguidores e reforça a ideia de que o movimento não é só espiritual, mas também uma marca de status — uma espécie de "masculinidade premium".
A interseção com a política também não escapa ao olhar atento: muitos desses líderes e seus seguidores exibem apoio explícito a pautas conservadoras e nomes da direita cristã. Em ano pré-eleitoral, o discurso do “homem forte, de Deus e da pátria” ressurge com força.
Masculinidade em crise ou crise da masculinidade?
Para críticos, o Legendários explora uma ansiedade real — o papel do homem em um mundo que questiona os privilégios históricos do patriarcado —, mas oferece respostas perigosamente simplistas. Em vez de fomentar uma masculinidade saudável, baseada em empatia, autocuidado e responsabilidade emocional, ele reforça uma visão binária e autoritária. O que se vê é uma resposta violenta a avanços sociais. Ao invés de acolher mudanças e novas formas de ser homem, o movimento tenta reinstaurar a supremacia masculina como modelo espiritual, o homem como o grande provedor enquanto a mulher “cuida da casa e dos seus”.
Além disso, a mistura com o universo do coaching traz uma lógica de performance e produtividade que transforma até a espiritualidade em capital simbólico. Ser um homem legendário significa orar mais, treinar mais, liderar mais. O fracasso, nesse cenário, vira pecado — e não um processo humano.
Um legado perigoso?
Há quem veja no Legendários um espaço legítimo de acolhimento e discipulado masculino. Mas o crescimento acelerado do movimento e sua penetração entre jovens e celebridades acendem alertas. O risco é naturalizar discursos que, sob o pretexto de fé e motivação, reforçam a misoginia, o autoritarismo e a intolerância.
No final das contas, entre slogans de guerra espiritual e selfies com celebridades, talvez o que o Legendários esteja resgatando não seja a masculinidade — mas um modelo ultrapassado, revestido com nova embalagem, pronto para ser consumido por quem ainda não aprendeu que ser homem também é saber mudar.