Neste 1 de março de 2025, enquanto milhões de brasileiros iriam curtir o sábado de Carnaval, mais de um bilhão de muçulmanos ao redor do mundo iniciavam o primeiro dia de jejum de Ramadan, o mês sagrado do Islam. Uma parte deles está, claro, aqui no Brasil.
No ano passado, fomos à Mesquita Brasil, a primeira da América Latina, para acompanhar o primeiro desjejum (iftar) do Ramadan. Desta vez, a reportagem é na periferia de São Paulo, na Summayah Bint Khayyat, em Embu das Artes. O local é, por si só, um marco na história do Islã no Brasil: é uma mesquita na favela.
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“Os muçulmanos do Embu são diferenciados”
Um erro frequente e comum de muitos brasileiros é confundir o Islã com a cultura árabe. Primeiramente porque parte considerável dos árabes que vieram ao Brasil e hoje formam parte importante da vida brasileira eram cristãos. E, mais importante, religião e cultura são coisas diferentes. Apesar da grande maioria dos árabes serem muçulmanos, a maioria dos muçulmanos não são árabes. Indonésia, Paquistão e Índia, os três países com maior número de muçulmanos no mundo, não são árabes.
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E é importante deixar claro isso logo no início porque os frequentadores da mesquita Summayah bin Khayatt não nasceram como Abduls, Ismails ou Mohamads.
São o Luan, o Leonel, o Otávio, oriundos não de Damasco ou de Beirute, mas do Embu, do Valo Velho, do Campo Limpo. Dos dez presentes na oração do pôr-do-sol (maghrib) na primeira quebra de jejum do Ramadan, oito eram brasileiros. Dois, Ali e Irfaan, eram imigrantes paquistaneses que trabalhavam na região.
Foi um pouco antes do fim do jejum, inclusive, enquanto o povo conversava sobre a distribuição das marmitas que começou uma brincadeira, e, olhando para mim, um dos fiéis disse “o cara vai achar que os muçulmanos do Embu são diferenciados”, com bom humor.
Por um lado, são iguais a todos os outros muçulmanos: rezam para a mesma Meca, adoram o mesmo Allah, leem o mesmo Alcorão, jejuam no mesmo mês, seguem os mesmos profetas. Mas não é toda vez que você vê um sheikh que comanda as orações contando uma história e falando parça. Afinal, e isso é importante, é uma mesquita na favela.
Entre os fiéis, relatou César Kaab Pugnaz, fundador da mesquita, “tem advogado, tem noia, tem de tudo”.
Islamofobia e luta
O nome da mesquita é em homenagem à primeira mulher muçulmana martirizada por sua fé. Summayah foi uma das primeiras pessoas a se converter à religião e, em 615 foi assassinada por um clã árabe não-islâmico por sua fé.
E, como é relatado quase de maneira homogênea ao redor de todas as comunidades islâmicas no Brasil, o hijab das mulheres é um alvo da violência islamofóbica.
“Ser muçulmano no gueto é ter sobrevida. Você imagina uma mulher de hijab na favela. É um bagulho que tiram sarro, dão risada. É uma coisa que traumatiza a gente. Mas a gente entende que a deficiência não está em nós. Está na incapacidade dessas pessoas ter um pouco de compreensão sobre o que realmente se trata o Islã”, afirma.
Simultaneamente, o trabalho social da Mesquita quebra esse preconceito e ajuda ativamente a comunidade que a circunda.
A primeira quebra de jejum veio com a distribuição de marmitas para moradores da comunidade, ação que acontece desde 2021, na pandemia.
Mas não é só isso.
“[Na favela] os caras tratam pela caridade, os caras que ensinam boxe. Tá ligado? A gente não é conhecido somente pela religião, mas pelas ações. Pela prática que a religião ensina. Porque religião não é só você rezar, irmão”, afirma. “A gente faz um trabalho de alfabetização para adultos, tem uma farmácia comunitária, dá auxílio jurídico. Tem irmãs muçulmanas que são médicas que fazem um trabalho de conscientização sobre gravidez na adolescência”, explica Kaab.
A perseguição da imprensa
A trajetória de César se mistura com a da Mesquita, e, como a de muitos brasileiros muçulmanos ligados às lutas sociais e ao antirracismo: conheceu a religião através de Malcolm X, nos anos 1980. Mas foram longos anos até fazer a sua shahada – seu juramento – e mais alguns anos para transformar um quarto de sua casa numa mussala, uma sala de oração.
No começo, muitos o trataram como doido. Mas a mudança de suas atitudes – parou de beber, de fumar, mudou a forma de se relacionar, etc. – fez com que familiares, amigos e outras pessoas entrassem na religião. A Mussala ficou pequena e logo depois virou mesquita.
A iniciativa ganhou atenção. Ele recebeu o sheikh Mohamad Al-Arifi, prestigioso acadêmico saudita retratado pelo Ocidente como defensor do terrorismo, que veio ao Brasil para realizar palestras e acabou se interessando pelo trabalho de César. Naquele mesmo período, os crimes do auto-intitulado Estado Islâmico se espalhavam ao redor da mídia. E rapidamente a grande imprensa se apropriou da situação. A Veja o vendeu como um “jihadista” e a Record fez reportagens sobre César tentado o associar com os movimentos islamistas presentes no Oriente Médio e na África.
“Eu acordei como aliciador do Estado Islâmico no Brasil. Os caras invadiram minha casa de manhã para me levar para averiguação”, relata. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) esteve presente e César chegou a ser ensejado como um terrorista durante uma palestra de um assessor da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados para militares.
“Foi punk o bagulho, não foi brinquedo”, relata Kaab.
Depois de provar sua inocência, o trabalho acabou virando. Veículos como o The Intercept Brasil, a Ponte Jornalismo, a Mídia Ninja e outros veículos começaram a mostrar o outro lado da história. Depois, a Globo mostrou seu trabalho de forma honesta. E o seu objetivo, que é divulgar e convidar brasileiros para o Islã, ganhou ainda mais força.
O Islã é político?
Durante o período de perseguição, a imprensa e as autoridades tentaram afirmar que o muçulmano do Embu era um jihadista por usar uma camiseta com a palavra Jihad. O termo, que significa “esforço”, pode significar guerra em determinados contexto, mas também serve para temas espirituais e individuais. A luta do indivíduo contra si mesmo, como definiu César.
Quando questionei o fundador da mesquita sobre o que ele pensava de política, ele me disse que Jesus e Maomé foram revolucionários. Sujeitos que se revoltaram contra o sistema. A solidariedade à libertação contra o sionismo é clara e evidente. Na entrada da mesquita, está lá a bandeira da Palestina. Citou os malês como fontes de inspiração na luta contra a injustiça. E separa o trabalho da mesquita de suas visões políticas, mas deixa claro:
“É muito difícil ser muçulmano e ser contra a cota, não se indignar contra a opressão do público pobre, ser contra a vacina”, relata César, que perdeu esposa, sogra e tio para a Covid-19. “Há 1400 anos, o Alcorão falava, por exemplo sobre o que fazer contra a pandemia: fecha a quarentena. Então não tem como eu ser de direita, por exemplo”, explica.
Depois da conversa com o fundador da Mesquita, foi realizada a quebra de jejum com tâmaras. Depois, foi realizada a oração (salah), e o som do bismillah-ar-rahman-ar-rahim (Em nome de Deus, o Mais Gracioso, o Mais Misericordioso, abertura das suras do Alcorão e dita antes das orações) se misturava com a vibração dos carros tocando funk que giravam pelo Embu.
Fui convidado para o jantar e comi arroz, feijão, frango, salada e uma batata. Tudo fenomenal, com gosto de comida de vó. Depois, as marmitas começaram a ser entregues e eu parti de volta carregando dois livros nas costas ("Os Muçulmanos no Brasil", um relato de viagem de Abdalrahman al-Baghdadi, que viu o Islã em nosso país no século XIX, e uma tradução do sentido do Alcorão em Português).
Aos muçulmanos, Ramadan Mubarak. Aos não-muçulmanos, fica a recomendação para conhecer o trabalho da Mesquita Summayah bint Khayatt.