Quando se chega à Mesquita Brasil, localizada no Bairro do Cambuci e à beira da Avenida do Estado, você pode fechar os olhos e acreditar que está em outro país. Além do árabe, é possível ouvir burburinho em francês, português, inglês e outras línguas.
A primeira noite de Ramadã foi no domingo (10), e fui convidado para entrevistar o Imam no fim da tarde de segunda-feira (11). Me sentei em frente ao centro da mesquita e fiquei especulando na conversa de alguns dos membros, em árabe. Não entendi nada, além de alguns "habib", "inshallah", "mashallah", "alhamdulillah", "iftar", gritos, palmas e animação digna de superar qualquer família italiana que se diz gritalhona. E tudo isso de jejum.
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Alguns minutos depois, o Sheikh Mohamad al Bukai, imam da Mesquita Brasil, me recebeu para conversar sobre o tema. Em sua sala, além do Alcorão e de diversas hadiths, textos sobre a vida do profeta Maomé, estavam a Bíblia, o Livro dos Mórmons e outros textos sagrados.
Bastante sereno, o sheikh contou um pouco de sua história. “Aqui no Brasil nós não temos universidades islâmicas. Eu me formei na Síria, depois no Egito. Então a comunidade tem essa demanda de trazer sheikhs do exterior. Me convidaram para assumir o cargo. E acabei aceitando por um mês, aí estou aqui há quase 17 anos. E comecei lá no Pari, depois mudei para o Guarulhos, e também depois fiquei mais 5 anos na mesquita em Santo Amaro. Depois assumi aqui a Mesquita Brasil”, completa.
A Mesquita Brasil é uma das maiores do país e é a mais antiga da América Latina. Ela foi construída originalmente como um clube de palestinos no início do século passado.
Com o crescimento da comunidade muçulmana, tornou-se uma mesquita em 1929. Mas, ainda assim, é um ambiente de convívio social.
“A mesquita, na verdade, tem um propósito mais social do que religioso”, explica o sheikh. “A oração islâmica pode ser feita em qualquer lugar. Exceto na sexta-feira, tem que ser na mesquita. Mas cinco vezes por dia a pessoa pode fazer a oração com outras pessoas da comunidade. E essa oração em congregação ajuda a ter um laço social forte."
O que é o Ramadã
Muitos brasileiros sabem o básico sobre o Ramadã: é um mês onde os muçulmanos jejuam. O jejum, porém, tem uma explicação no livro sagrado do Islam e não se resume somente à comida: é a abstenção de água, comida, atividades sexuais e outros prazeres carnais.
“O mês do Ramadã é o nono mês do calendário lunar. E esse mês foi escolhido pela primeira vez para a revelação do Alcorão. Então foi nele que o início da revelação do Alcorão começou sobre o profeta Muhammad. Foi escolhido por esse motivo, por ser o mês do Alcorão. E foi desejado para fazer esse quarto pilar do islã: o jejum”, explica.
Os muçulmanos contam os anos através do calendário lunar. Enquanto se aceita o calendário gregoriano, os muçulmanos também adotam um calendário diferente, contado a partir da Hégira, data da saída do Profeta Muhammad de Meca para Medina.
“O jejum é uma prática que nós chamamos de curso espiritual, porque qualquer habilidade que a pessoa precisa ter, tem que treinar. Na religião nós temos duas coisas. Uma coisa que você tem que fazer. E outra coisa que você tem que deixar de fazer. São duas coisas. Ou você faz, ou deixa de fazer. Todas as outras obrigações religiosas são fazer. Oração, você fazer. Caridade, você faz. Mas o jejum é diferente. O jejum é você deixar de fazer algo. Então, é prática de você treinar isso. Isso traz para a pessoa a força de vontade. A pessoa tem disciplina sobre os seus desejos”, explica o sheikh.
“O jejum nos ensina como fortalecer nosso lado espiritual para poder ter, conhecer, deixar de fazer. Ter controle para você ter controle dos seus próprios desejos do corpo”, completa.
As obras sociais
Durante a oração, você vê homens e mulheres de diferentes línguas, ricos e pobres, ajoelhados com as testas no chão, rezando todos na mesma direção. Há carrões no estacionamento, mas há quem venha a pé ou de ônibus para a reza.
Quem chega para rezar a oração da quebra de jejum, o maghrib, recebe três saborosas tâmaras e um copo d’água para quebrar a abstenção.
Depois da oração, os fiéis se direcionam para o restaurante da mesquita, onde se alimentam no iftar, o tradicional jantar pós-quebra de jejum. O jantar é gratuito, e uma das obras sociais da entidade. Mas não é a única. O sheikh nos contou um pouco sobre o trabalho da mesquita com os refugiados.
“A primeira coisa que os refugiados dos países muçulmanos fazem é procurar as mesquitas como fonte de ajuda. A mesquita alugou dois prédios aqui para receber as pessoas que precisam de um teto, trabalho, ensinar língua, documentos, tudo que é básico, que o refugiado precisa, educação, vacinas, saúde, todas essas áreas, em conjunto com outras entidades”, explica.
“A mesquita teve um papel muito fundamental para ajudar essas pessoas, que hoje, graças a Deus, são cidadãos brasileiros, que estão dando trabalho até para muitos brasileiros aqui. Tem refugiados que já tem lojas, tem restaurantes e são pessoas que estão ajudando na construção da cidade”, completa.
A caridade
O sheikh também explicou que os muçulmanos possuem um sistema de caridade diferente do que se usualmente vê em outras religiões. Um é o zakat, uma contribuição obrigatória do Islã, e o outro é a sadaqa, não obrigatória.
“O zakat é um dos pilares da prática islâmica. E esse aqui tem que ter um cálculo, tem regras que tem que ser seguidas. É uma coisa obrigatória. Tem que pagar. Então, quando o muçulmano tem uma quantia de dinheiro ou de mercadoria, que equivale, por exemplo, 85 gramas de ouro, que é mais ou menos 30 mil reais. Se ele tem esse valor durante um ano, sobrando da sua necessidade, daquilo que ele gasta, ele é considerado rico. Essa pessoa tem que pagar 2,5% daquilo que ele tem para as pessoas mais carentes, mais necessitadas na sociedade”, afirma.
Mas ao contrário do dízimo, o zakat tem que ser direcionado para apoio direto dos mais necessitados. “Ele tem que ser um direito das pessoas mais carentes. E não pode fazer isso para construir um templo, para fazer uma obra, não. Tem que ser para a pessoa, tem que entregar às pessoas que precisam”, completa.
Já a sadaqa tem menos regras, não é obrigatória e pode ser destinada a diferentes objetivos. "A gente recebe doações e faz um trabalho social. Ajudamos os refugiados, mas também as pessoas mais carentes aqui do bairro, doando cestas básicas".
A islamofobia no Brasil
Desde 7 de outubro, com o início do conflito aberto entre Israel e Hamas, os dados sobre a islamofobia têm aumentado preocupantemente no Brasil. Um levantamento da USP mostrou que cerca de 55,6% dos muçulmanos e 78% das mulheres muçulmanas notaram um aumento na violência relacionada à islamofobia.
“A gente percebeu uma mudança. Está crescendo essa onda de islamofobia e contra estrangeiros em geral. Então, isso aqui não chegou a ser um fenômeno, porque a maioria dos brasileiros são tolerantes. Mas, como falei, existe esse medo, a gente tem essa preocupação”, completa.
A pesquisa indica que aproximadamente 70% tanto dos homens quanto das mulheres conhecem alguém que passou por situações de violência por motivos religiosos. Mulheres são as principais vítimas de islamofobia no Brasil, com 72,9% delas relatando que o espaço público é o local onde mais sofrem preconceito.
O sheikh atribui isso ao desconhecimento: “O Islam é uma religião muito famosa, mas é pouco conhecida. Muitas conhecem o Islam de uma forma negativa, por vários motivos. Para mudar isso, leva tempo. A mídia internacional está sendo usada para realmente distorcer a imagem da religião que mais cresce no planeta”.
“A gente, claro, com a informação a gente consegue mudar os desinformados. Mas o problema é quando a pessoa tem uma agenda”, completa.
A diversidade
Por fim, o sheikh tem um recado para os leitores de outras religiões que chegaram até o fim deste texto. Perguntei a ele o que uma pessoa deve fazer para conhecer melhor o Islã.
“O que eu posso dizer para essa pessoa é preciso ouvir do Islã, não o que falam sobre o Islã. O brasileiro tem esse privilégio, aqui tem mesquitas, tem comunidade islâmica e pode-se conhecer de perto o Islã, a prática dos muçulmanos, o que os muçulmanos acreditam, o que eles fazem. Esse aqui é um espaço de acesso muito fácil”, convida.
“Você não precisa viajar para conhecer o Islã. Não precisa ir ao Afeganistão ou à Arábia. O Islam está aqui no Brasil, aqui do seu lado. Os muçulmanos aqui também são brasileiros. Se você quer saber e conhecer, basta você vir, procurar uma fonte correta para tirar as suas dúvidas e ter mais conhecimento”, completa o sheikh.
Depois, fui recebido no iftar com outros sheikhs da mesquita. No restaurante, estavam sujeitos de todas as classes sociais, mulheres - com e sem o véu -, crianças, idosos, pessoas em situação de necessidade e até os mais ricos. Havia comida suficiente para alimentar aquela centena de pessoas. E pude comer bem.
A hospitalidade e simplicidade dos líderes e dos fieis foi verdadeiramente tocante. A fome de algumas horas de jejum estava ali, expressa no rosto de todos. Mas a alegria da comunhão também.