Os clubes militares que tradicionalmente promovem celebrações em alusão ao golpe de 31 de março de 1964 adotaram uma estratégia de linguagem para evitar repercussões legais e punições institucionais. Em vez de "comemoração", os organizadores passaram a se referir aos eventos como "rememoração" do golpe, buscando minimizar a leitura de que estão enaltecendo um regime autoritário.
O Clube Militar do Rio de Janeiro, um dos principais organizadores dessas iniciativas, divulgou um convite para um evento intitulado "Rememoração do Movimento Democrático de 31 de março de 1964", que ocorrerá em suas dependências no próximo dia 31. O encontro incluirá uma palestra do ex-desembargador Sebastião Coelho e um almoço para os participantes, ao custo de R$ 100 por inscrição. O evento, apesar da mudança na nomenclatura, segue sendo um ponto de encontro para militares que defendem a interpretação do golpe de 1964 como uma ação necessária para conter o avanço do comunismo no Brasil.
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De acordo com um militar ligado à organização do evento, a mudança na nomenclatura foi uma medida preventiva para evitar questionamentos na justiça. O receio é que qualquer indicação de apologia ao regime militar possa gerar repercussão negativa e eventuais sanções administrativas. A troca de terminologia reflete um temor crescente entre esses grupos, diante do fortalecimento de debates sobre a responsabilização de agentes do regime militar e a pressão social contra manifestações que enaltecem a ditadura.
A estratégia ocorre em meio a um contexto de maior escrutínio sobre a influência política de setores militares na sociedade brasileira. Um levantamento recente revelou que mais de 7 mil militares da ativa estão filiados a clubes militares, incluindo o Clube Militar do Rio de Janeiro, o Clube do Exército e o Clube Naval, entidades que, além de oferecerem atividades recreativas, têm se posicionado politicamente de forma ativa. O Clube Naval, por exemplo, conta com 4.220 militares da ativa entre seus membros, enquanto o Clube Militar abriga 1.821 militares do Exército.
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A intensa participação de militares da ativa nesses espaços tem levantado questionamentos sobre a separação entre o serviço militar e a política. Embora a legislação proíba a participação política ativa de militares em serviço, os clubes se tornaram locais estratégicos para discussões e articulações sobre temas políticos e institucionais. Durante o governo Bolsonaro, por exemplo, essas associações foram palco de debates sobre o voto impresso, ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e manifestações de apoio a pautas conservadoras. Além disso, registros indicam que esses clubes foram usados para a formulação de notas públicas com teor crítico ao governo federal e em apoio a movimentos de contestação institucional.
Essa relação estreita entre militares da ativa e associações que frequentemente emitem posicionamentos políticos levanta questionamentos sobre a influência dessas entidades dentro das Forças Armadas e sua possível interferência no cenário democrático. Nos últimos anos, o STF reforçou o entendimento de que atos que incitam a ruptura da ordem democrática podem ser passíveis de responsabilização. As preocupações aumentaram especialmente após a participação de militares em manifestações que questionavam o resultado das eleições presidenciais de 2022, levantando suspeitas sobre o grau de adesão de setores das Forças Armadas a teses golpistas. Investigações conduzidas por órgãos de fiscalização também apontam que parte dos recursos utilizados pelos clubes militares pode estar sendo direcionada para apoiar causas políticas, o que reforça a necessidade de uma maior transparência sobre o financiamento dessas entidades.
Apesar das tentativas de suavizar a abordagem, o evento mantém a presença de figuras polêmicas. O ex-desembargador Sebastião Coelho, convidado para palestrar, ficou conhecido por suas declarações em que defendeu a aplicação do artigo 142 da Constituição para justificar uma intervenção militar, um argumento amplamente rechaçado por especialistas em direito constitucional. Coelho, que chegou a discursar em atos bolsonaristas, argumenta que as Forças Armadas poderiam agir como um "poder moderador", interpretação que não encontra respaldo jurídico e tem sido desmentida reiteradamente por juristas e magistrados. Além dele, outros palestrantes do evento são conhecidos por sua defesa aberta da ditadura militar, o que reforça a preocupação com o conteúdo disseminado nessas reuniões.
Outro ponto que chama atenção é a insistência dos clubes militares em manter eventos alusivos ao golpe de 1964, apesar da crescente rejeição da sociedade a esse tipo de narrativa. Em 2023, o governo federal determinou que nenhuma unidade militar poderia realizar comemorações oficiais da data, reforçando o caráter inconstitucional da exaltação ao regime. No entanto, os clubes militares, por serem entidades privadas, seguem realizando tais eventos, o que indica uma resistência por parte de setores das Forças Armadas em aceitar a revisão crítica do período ditatorial. O respaldo financeiro e organizacional dado a essas celebrações por militares da ativa sugere que há um esforço contínuo para manter viva uma visão distorcida da história do país.
Enquanto os clubes militares mantêm a insistência em realizar seus eventos, a preocupação sobre a permanência de visões antidemocráticas dentro de segmentos das Forças Armadas segue como um ponto de debate. A mudança de terminologia, para setores da sociedade civil e parlamentares, é apenas um artifício retórico para preservar a narrativa daqueles que ainda enxergam o golpe de 1964 como um marco positivo na história do país. Especialistas alertam que esse tipo de evento reforça uma cultura de revisionismo histórico que dificulta avanços na consolidação da democracia e na responsabilização de agentes que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura.
Diante desse cenário, cresce a pressão para que haja uma regulamentação mais rigorosa sobre a participação de militares da ativa em associações com atuação política. O uso de recursos de consignação para o financiamento dessas entidades também tem sido alvo de críticas, uma vez que, na prática, parte dos recursos salariais de militares é direcionada a instituições que promovem discursos políticos e, em alguns casos, antidemocráticos. A sociedade civil e setores do governo federal observam com atenção esses movimentos, buscando formas de conter a politização dos espaços militares sem comprometer a liberdade de associação. Além disso, há propostas sendo debatidas no Congresso Nacional para restringir o uso de espaços institucionais por associações que atuam politicamente, visando garantir maior separação entre atividades recreativas e influências ideológicas dentro das Forças Armadas.
A crescente mobilização de militares dentro desses clubes também tem levantado questionamentos sobre possíveis impactos em futuras eleições e na condução de políticas públicas voltadas para a segurança nacional. Com o número de associados da ativa aumentando, há um temor de que esses espaços se tornem instrumentos de pressão política sobre decisões estratégicas do governo. A necessidade de transparência e de regulamentação sobre o funcionamento desses clubes passa, portanto, a ser uma pauta central para quem defende um modelo de Forças Armadas profissional e despolitizado.