PARECE MENTIRA, MAS NÃO É

PM de SP registra morte de idoso por tiro de soldado na própria PM, não na delegacia

Procedimento inacreditável leva a crer que governo de Tarcísio de Freitas criou uma lei particular para o estado. A justificativa absurda da SSP seria cômica, se não fosse trágica

Governador Tarcísio de Freitas e o sec. de Segurança, o PM Guilherme Derrite.Créditos: Rogério Cassimiro/Governo de São Paulo
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A cada dia uma notícia mais inacreditável que a anterior, sempre relacionada à Polícia Militar de São Paulo, surge e faz o cidadão brasileiro duvidar que tanta trapalhada, violência, arbitrariedade e truculência seja possível numa só instituição. Lógico que nem sempre foi assim. A coisa degringolou após a chegada ao poder do bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), que sentou na cadeira de governador e impôs uma política de segurança pública brutal e assassina que deu poderes quase ilimitados para a PM.

Nesse cotidiano surreal de violência policial, a última ocorrência assustadora foi a de um idoso que ia à farmácia, no bairro do Tatuapé, na capital, na última terça (7), e acabou sendo morto por um tiro disparado por um soldado que perseguia, junto com seu parceiro, uma dupla numa moto. Clóvis Marcondes de Souza, que chegou a ser levado para uma unidade médica próxima e não resistiu aos ferimentos, faria 71 ano no fim deste mês e era morador da região havia sete anos. Ele tinha ido comprar remédio no estabelecimento perto de sua residência e costumava passear pelas ruas da localidade diariamente. Ferroviário aposentado, ele era casado e tinha dois filhos.

Como se não bastasse o ato selvagem de violência que culminou com um senhor de idade baleado mortalmente no meio da rua, a poucos passos de seu lar, um recorte inacreditável desse crime provocou um verdadeiro racha institucional entre a Polícia Militar e a Polícia Civil do estado. Tudo porque, em situações do tipo, em qualquer parte do território brasileiro, determina a lei que a ocorrência seja apresentada numa delegacia da Polícia Civil, para que o delegado responsável prossiga com os procedimentos de praxe, como declarar prisão em flagrante, instaurar inquérito, determinar realização de perícias, entre outras burocracias que preservem a isenção nas investigações.

Mas os oficiais superiores dos PMs envolvidos na morte do aposentado na Zona Leste simplesmente determinaram que “a ocorrência fosse registrada” na Seção de Polícia Judiciária Militar (SPJM). Neste órgão, de caráter estritamente militar, a própria PM definiu que o tiro foi acidental e que se tratou de um crime de natureza culposa, ou seja, sem a intenção de matar. A aberração consiste no fato de que apenas um delegado de Polícia Civil pode fazer tal avaliação e proceder com o registro de qualquer ocorrência delitiva. Na prática, essa conduta da PM registrar um crime na própria PM, definindo o que ocorreu no fato praticado por um PM, soa como ridículo e sem qualquer validade legal.

Pelo menos é o que dizem especialistas e profissionais da segurança pública. Em entrevista ao portal g1, o presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), André Santos Pereira, disse que a ação da PM é totalmente ilegal porque cabe exclusivamente à Polícia Civil a competência da investigação, uma vez que o envolvimento da PM na apuração de um fato cometido por PMs poderia resultar num comprometimento das diligências, das coletas de provas e na instrução do inquérito que apura o crime.

“Isso pode resultar em graves prejuízos para as investigações por diversos motivos: contaminação das provas, possibilidade de manipulação ou substituição de evidências e dificuldade na comprovação da autenticidade das provas. Portanto, a não observância das regras da cadeia de custódia, aliada à competência da Polícia Civil para apuração de infrações penais, pode comprometer seriamente a eficácia das investigações e a garantia da justiça no sistema judiciário, enfraquecendo a credibilidade das evidências apresentadas e colocando em risco a efetividade da busca pela verdade e pela aplicação correta da lei”, disse Pereira.

A alegação da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, comandada pelo bolsonarista Guilherme Derrite, um oficial da Rota licenciado do cargo de deputado federal para assumir a pasta, que é um entusiasta da violência policial, foi ainda mais longe e citou até um malabarismo jurídico para o procedimento sem sentido e bizarro.

“Conforme previsto no Código Penal Militar, por se tratar de um crime culposo, cometido por um policial militar em serviço, o caso foi registrado junto à Polícia Judiciária Militar, que está à frente da investigação e confirmou a prisão em flagrante do responsável pelo disparo”, disse a SSP. No entanto, a vítima foi um civil, que simplesmente caminhava em direção a uma farmácia, sem qualquer ligação com a ocorrência em andamento, o que em nada o relaciona “com o previsto no Código Penal Militar”.