A morte de um PM em Campo Magro, na Região Metropolitana de Curitiba, disparou uma onda de violência contra os moradores da Ocupação Nova Esperança, do Movimento Popular por Moradia (MPM). O soldado Gabriel Thomaz Fadel, de 26 anos, foi encontrado morto no Domingo de Páscoa (31 de março) dentro da ocupação sob circunstâncias ainda mal explicadas e, nos dias subsequentes, uma moradora foi torturada na frente dos filhos, pelo menos três moradores foram executados e a comunidade vive em vigília constante contra as agressivas visitas policiais realizadas no período da noite.
A PM alega que Fadel foi sequestrado, torturado e morto por moradores da ocupação. O MPM, que responde pela Ocupação Nova Esperança, tem outra versão. De acordo com um dos seus militantes, que falou à Revista Fórum em condição de anonimato por medo de ser alvo de violência, os moradores afirmam que o policial esteve na comunidade e disparou uma série de tiros contra alguns dos vizinhos e que acabou sendo vítima um linchamento ocasionado como reação à sua conduta.
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Mas comecemos pela versão oficial. O soldado Fadel tinha acabado de se formar na PM paranense em setembro de 2023. Ele também vem de uma família de PMs, sendo o seu pai, Milton Fadel, um coronel aposentado. Também foi encontrado no porta-malas do Corsa que dirigia e estava no nome de familiares. Dado seu histórico, é de se imaginar que a morte causou enorme comoção nos meios de comunicação locais.
O site CGN, especializado em notícias sobre o Paraná, deu a notícia de sua morte com o seguinte título: “Soldado da PM é sequestrado, torturado e morto a tiros; corpo foi encontrado em porta-malas de veículo”. Eis um resumo da versão oficial da PM.
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A matéria relata que uma viatura foi destacada para a ocupação após um tiroteio e que, ao encontrarem o corpo, os policiais relataram haver manchas de sangue e estojos de munição de fogo ao redor do carro. Fadel estaria sumido desde a sexta-feira (29) anterior. “Houve desconfiança de que poderia ser ele, mas não foi possível identificá-lo no local. Segundo os policiais, o corpo estava muito machucado”, diz um trecho da reportagem que não menciona marcas de tiros no corpo do policial e levanta a possibilidade de que seus colegas estariam cientes que o soldado fazia visitas extraoficiais à comunidade ainda que não houvesse nenhuma ocorrência aberta ou averiguação do setor de inteligência da PM em curso no local.
“A Polícia Militar do Paraná lamenta o falecimento do Soldado Gabriel Thomaz Feuerstein Fadel e se solidariza com os seus familiares e amigos. A Corporação está aplicando seus esforços nos trabalhos de inteligência, em colaboração à Polícia Civil do Paraná, buscando a elucidação do delito”, informou a Polícia Militar do Paraná em nota divulgada para a imprensa.
Em reportagem que faz um perfil do policial morto, o site da paranaense Ric menciona que a polícia encontrou um morador da comunidade ferido. Mas não menciona que estava baleado. Quem contou esse detalhe para a reportagem da Fórum foi o militante do MPM.
“Esse PM não foi levado de forma forçada lá pra dentro. Ele estava lá voluntariamente. E essa é a grande incógnita da história. Ninguém sabe o que ele foi fazer lá. A PM argumenta que ele foi sequestrado, que houve tortura, mas nada disso é verdade. Já foi constatado que não é verdade. Esse cara estava lá dentro por motivos escusos, que a gente não sabe muito bem quais são. Existem algumas suspeitas sobre isso, mas ainda precisamos comprovar. O que sabemos é que ele tentou matar uma pessoa lá dentro e diante desse cenário, acabou morrendo. Só depois que tomamos conhecimento de que era da polícia, e aí vieram os desdobramentos da presença policial, justamente pra tentar impedir que esse fato seja exposto”, relatou o militante do MPM.
Para ele, a perseguição aos moradores que se seguiu se deve tanto a uma espécie de desejo de vingança dos colegas, como pelo interesse dos mesmos em destruir as provas do crime que comprometem a versão oficial. A reportagem teve acesso, por exemplo, a um vídeo em que um comerciante local, morador da ocupação, é ameaçado ao telefone por um homem que se passa por alguém do crime organizado. Essa pessoa queria a entrega de todas as imagens de câmera de segurança do seu estabelecimento. A loja ficaria próxima do local onde o PM teria falecido.
“Paralelamente a isso, já houve a tentativa também de executar todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente. Já mataram três pessoas até agora, já prenderam algumas outras também, e ainda continuam buscando outras pessoas que estariam supostamente envolvidas no assassinato do policial. Então, eles estão com esses dois objetivos: apagar as provas e executar sumariamente todas as pessoas que acreditam estar envolvidas na morte do Fadel”, denunciou o militante social.
Uma “pequena operação escudo” na República de Curitiba
Dessas três mortes, duas delas foram noticiadas pelo portal g1 em 2 abril. Em ambos os casos, a PM relatou os ocorridos como “morte seguida de resistência e troca de tiros”, repetindo o script que vimos na Baixada Santista, em São Paulo. Segundo a matéria do g1, um desses suspeitos foi abordado em casa e, ao resistir, foi morto.
O segundo morto teve uma história semelhante. Após ter o paradeiro revelado pelos próprios familiares, foi procurado pela Polícia Militar e então teria resistido e morrido em troca de tiros. O major que estava na ação contou essa história do programa Balanço Geral, da Ric (Record local). Também disse que o irmão da vítima teria revelado quem eram os autores da morte de Fadel e que o tio foi preso com 5 mil reais em espécie que levaria para ajudar na fuga do sobrinho. A Polícia Civil segue investigando o caso.
Ao todo duas pessoas foram presas e o homem que foi encontrado ferido a tiros no Domingo de Páscoa segue recebendo atendimento médico no Hospital Evangélico Mackenzie sob escolta policial. Ele já está preso e deve ser encaminhado a uma carceragem ou penitenciária assim que tiver alta.
“Existe um rapaz que tomou parte desses tiros e que está vivo. Ele é uma testemunha viva dessa situação toda. E inclusive há uma dificuldade muito grande do advogado para ter acesso a ele. Estão impedindo que os advogados consigam fazer essa comunicação com ele. Ele é um cara que pode contradizer toda a narrativa que foi criada em cima dessa história. Porque colocaram o policial como o herói, um guerreiro, que estava lá sabe Deus por quê. Existe o medo de que executem ele”, denunciou o militante.
Mas antes das execuções e das prisões, na noite seguinte à morte do soldado Fadel, foi iniciada a “pequena operação escudo curitibana” com uma incursão policial, na calada da noite, na comunidade. Na ocasião, invadiram a casa de uma moradora, que também é coordenadora da Nova Esperança.
Ela tomava banho e seu filho pequeno estava na sala no momento da invasão de domicílio. Os PMs a tiraram do banheiro nua e a espancaram na frente da criança. De acordo com o MPM, só não ocorreu nada ainda mais grave porque a vizinhança se reuniu na porta da casa e pressionou os policiais para que fossem embora. Um vídeo publicado nas redes do movimento no dia seguinte mostra o tamanho da truculência dos agentes.
“É uma das coordenadoras da comunidade e talvez seja por isso que eles foram até ela. A polícia sabe identificar quem são os coordenadores. Então eles geralmente vão direto ali quando acontece alguma coisa nos arredores. Além de ter sido torturada sem roupa ainda foi na frente da criança. Invadiram a casa sem mandado nenhum”, denunciou o militante.
O Movimento Popular por Moradia (MPM) e a Ocupação Nova Esperança
O Movimento Popular por Moradia existe desde 2010 nas periferias de Curitiba e é responsável por uma série de ocupações de trabalhadores sem teto que ocorrem na capital paranaense e região. Com fortes ligações com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), sempre marca presença nas mobilizações da esquerda curitibana.
“A gente busca através da organização popular, assim como outros movimentos de luta por moradia, também fazer ocupações em territórios ociosos. Então, desde esse período, a gente tem um acúmulo de diversas comunidades nas periferias das regiões metropolitanas de Curitiba e na própria capital”, explicou o militante entrevistado.
É um movimento já bastante experiente, inclusive com perseguições. Em 2018, uma ocupação chamada 29 de março sofreu uma experiência semelhante a atual. Como desdobramento da morte de um PM em região próxima à ocupação, o crime foi atribuído aos moradores e um incêndio criminoso atingiu essa comunidade. “Eles incendiaram uma das nossas ocupações como forma de retaliação. Essa ocupação fica na cidade industrial de Curitiba, é o maior bairro que tem aqui na cidade e é a segunda ocupação do movimento”, explicou o militante.
Mas com a Ocupação Nova Esperança, que abriga cerca de 1200 famílias, nunca tinha ocorrido nada parecido. Pelo contrário. De todas as comunidades que se consolidaram através do MPM, ela é a mais destacada.
“Tem um perfil ‘ruro-urbano’, que a gente costuma denominar. Então ela tem uma característica que lembra um pouco dos assentamentos do MST, e tem muita iniciativa lá dentro, porque era um espaço público, era uma fazenda do Estado, na qual eles trabalhavam com dependentes químicos, e ficou durante muitos anos abandonado. Tem muita estrutura lá dentro. Quando a gente ocupou a área, tinha muita estrutura lá dentro pra ser reaproveitada. Diante disso a gente conseguiu desenvolver várias iniciativas lá”, disse o militante do MPM.
Além de servir como moradia, a Nova Esperança também desenvolve atividades econômicas que passam pelo plantio de alimentos, fomento de comércios locais para atender às necessidades da comunidade e oficinas de reciclagem. Também conta com uma ampla biblioteca e salas de estudos que atendem desde as crianças que estão nas escolas até adultos que buscam retornar aos estudos.
Também desenvolve iniciativas ambientais, como o reflorestamento de mata nativa e o cuidado com nascentes de rios. O corte de árvores é proibido nas imediações do território. “Sem saneamento, moradores constroem mais de mil fossas ecológicas no PR”, diz uma matéria do Uol sobre a Nova Esperança de novembro do ano passado.
“Ganhamos o prêmio do Periferia Viva, através do Ministério das Cidades, porque conseguimos desenvolver escola, biblioteca, espaço cultural, cozinha, padaria e espaço esportivo, para além da moradia em si. A ocupação existe há quatro anos e é bem desenvolvida pro tempo de existência que ela tem. É uma favela com uma riqueza natural muito grande. Acho que esse é o grande destaque da comunidade. Não existe ordem de despejo. Não tem um processo de regularização, mas também não há uma ordem eminente de despejo. Está congelado o processo”,explicou o militante.
Após os recente episódios, a comunidade modelo está em alerta, com a realização de constantes vigílias. “Estamos tomando cuidado para que ninguém sofra nenhuma retaliação sozinho. Então a gente está fazendo essa vigília para se precisar de uma coisa mais emergencial, é fácil juntar o povo e filmar para rapidamente fazer as imagens chegarem ao Ministério Público, Defensoria e a quem quer que seja, para que a gente não esteja isolado contra a polícia”, diz a fonte.
Quando perguntado se alguém que teria interesses no território estaria bancando a presença do policial ali, o militante diz que acha pouco provável. Segundo seu relato, a principal hipótese levantada entre os moradores é de que o PM estaria agindo sozinho para obter algum pequeno benefício.
“Todo território tem interessados. Não existe vácuo nesse tipo de ambiente. É um problema que a gente enfrenta para além da Nova Esperança. Sempre tem um grupo interessado, tanto na questão do tráfico, quanto na grilagem e comercialização de terreno. Esse é um problema muito amplo. Com certeza tem, mas aí é uma discussão que levaria a um outro patamar. Não sei se isso vai se enquadrar nesse caso específico”, finalizou.
A Revista Fórum pediu um posicionamento para a Secretaria Estadual de Segurança Pública do Paraná sobre as denúncias e fomos orientados a falar diretamente com a Polícia Militar. A matéria será atualizada logo que a corporação se manifestar.