Embora poucos saibam, foi na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais, que se deu início a uma das feridas mais profundas da história brasileira, a ditadura militar, em 1964. E hoje também é uma das cidades brasileiras que guardam em ruas e edifícios marcas da repressão imposta pelo regime. É o que o doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor na Universidade Federal de Goiás (UFG) Yussef Campos explica à Fórum.
"Por meio dos relatos presentes nas Comissões da Verdade nacional, estadual e municipal (de Juiz de Fora), podemos identificar lugares da memória da ditadura. Desde prisões a locais de julgamentos, como de aplicação de torturas e de assassinato de presos”, afirma o historiador. Em seu artigo publicado em 2023 junto da pesquisadora Deborah Neves, “For a Legal Protection of Places of Hurtful Memory of the Military Dictatorship in Juiz de Fora, Brazil (1964-1985)” – em português, Por uma Proteção Legal de Lugares de Memória Sensível da Ditadura Militar em Juiz de Fora, Brasil (1964-1985) –, ele mostra como o município mineiro acabou sendo uma peça fundamental no tabuleiro do golpe.
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“A cidade liderou a materialização do golpe, em 31 de março de 1964, com a marcha das tropas do general Olímpio Mourão Filho partindo de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro (um dos principais núcleos de repressão dos governos militares e da capital até 1960). Foi também sede da 4ª Região Militar, de julgamentos e de audiências de suspeitos e testemunhas na Auditoria Militar, além de sessões de tortura e prisões em instalações civis e militares”, escrevem os dois autores.
No entano, segundo Yussef, o apagamento histórico persiste até hoje em alguns locais que serviram à ditadura em Juiz de Fora. Além disso, o pesquisador diz que mesmo aqueles que são tombados, não apresentam em seus decretos de tombamento a vinculação com a ditadura militar, impedindo a devida contextualização e reflexão crítica sobre o passado.“Vários prédios na cidade são apagados, por meio de um silenciamento das políticas públicas."
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“Há locais listados durante a gestão do prefeito Tarcísio Delgado (PMDB-MG), entre 2000 e 2004, mas sem nenhuma referência (sinalização pública?) como locais de memória da ditadura. Entre eles estão a Delegacia de Polícia Civil, o Quartel General e da Polícia do Exército, e a 4ª Auditoria Militar, apesar de os relatórios da Verdade Nacional, Estadual e Municipal indicarem que todos esses locais são de memória da ditadura”, revela ele no artigo.
Para evitar que esses lugares sejam "espaços de esquecimento", o professor identificou os prédios em seu estudo:
- Lugares de memórias não tombados: a penitenciária em Linhares; o 10º Regimento de Infantaria (hoje 10º Batalhão de Infantaria), no bairro Fábrica; o 2º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar (hoje 2º BPM), em Santa Terezinha;
- Lugares de memórias tombados, mas sem a apresentação no decreto de tombamento de sua vinculação com a ditadura militar: a Delegacia de Polícia, transformada em conservatório de música, na Batista de Oliveira; o Palacete Frederico Ferreira Lage, sede da Brigada 31 de Março, no QG/4ª Cia. de Polícia do Exército (hoje 4ª Cia de Polícia do Exército), no Mariano Procópio; e o prédio onde funcionou a Auditoria Militar, na Praça do Canhão.
A Praça do Canhão, em Juiz de Fora, era a sede da Auditoria da Justiça Militar durante a ditadura. O livro "Memórias da Repressão", disponível no site da Prefeitura, revela que centenas de militares foram presos ou perseguidos ali por motivos como:
- Integração a sindicatos ou ao movimento estudantil;
- Publicação ou circulação de jornais alternativos;
- Leitura de "obras comunistas" ou defesa do marxismo;
- Participação em movimentos de guerrilha urbana.
O Volume I do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade afirma que a Auditoria “foi utilizada pelo sistema repressivo como um braço de apoio para que os objetivos da ditadura não fossem desviados”.
Questionado pela imprensa local, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) enviou uma nota comentando as informações. “No que diz respeito às alterações de decretos de tombamento, a Lei 10.777/2004 permite que o objeto de proteção seja ampliado e também que sejam reconhecidos outros elementos relevantes socialmente. A alteração pode ser protocolada por qualquer cidadão, mediante justificativa. O Comppac, até o presente momento, não recebeu solicitações neste sentido. Sobre os prédios citados que não são protegidos, o pedido de tombamento também pode ser desencadeado pela sociedade civil para, em seguida, ser avaliado pelo conselho.”
Estudo sobre a memória sensível
“A memória de Juiz de Fora e suas nuances difíceis, dolorosas, traumáticas, sombrias são essenciais para não se permitir o elogio à tortura e à barbárie. Esses edifícios são lugares de memória, dor, luto, vestígios e documentos, até mesmo provas, quando combinados com documentos, como fotografias, documentos, testemunhos, de que foram sede da mortificação de corpos e vidas em nome de uma ideologia autoritária, como exemplos insidiosos de ataques aos direitos humanos”, reitera Yussef.
Para ele, a memória sensível - conceito escolhido para classificar os locais de repressão, por estarem na memória dos sobreviventes e daqueles que morreram - o "nunca mais" e a necessidade de evitar a repetição dos horrores da ditadura não se materializam nesses reconhecimentos oficiais. Em vez disso, os edifícios são tombados por sua suposta ligação com "mitos de origem" da cidade, ainda ignorando de alguma forma a complexa e sombria realidade do passado.
A politização da facada por Bolsonaro
O historiador volta no tempo e ainda lembra a facada no ex-presidente Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, durante a campanha eleitoral, que teria sido um dos pontos para levar o então deputado à Presidência em 2018. “Infelizmente a esquina na qual o ex-presidente teria tomado a facada virou palco de peregrinação de extremistas”, analisa. O fato de a cidade servir de apoio em momentos pontuais da história para ganho de influência pela extrema direita é, para ele, algo a ser considerado.
Em vários momentos, o ex-presidente postou em suas redes sociais e teria usado o ataque no município para reforçar um tom de vitimização e criar “cortinas de fumaça” em relação a casos de investigação pela PF e à pandemia, assim como para tentar angariar sua base de apoio. “Não são meramente eventos fortuitos ou somente consequência da disseminação de ‘fake news’. O extremismo de direita já ocupa (ou ocupou, com riscos de retomar) o poder”, diz.
Em 2022, quase um novo golpe
A Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Tempus Veritatis este ano para investigar a suposta organização de um golpe de Estado por um grupo político durante as eleições presidenciais de 2022. Entre as provas coletadas, chegou-se à suspeita de participação direta do então presidente Jair Bolsonaro (PL) no esquema.
Os envolvidos com a minuta golpista que propunham a instauração de um estado de sítio estão sendo investigados pelo TSE por crimes de tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e associação criminosa. A minuta inclusive foi encontrada no ano passado, na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres. O fato chegou a repercutir no Brasil e no mundo em 2023.
Educação e justiça: os caminhos
Bolsonaro ter chegado ao Executivo seria um reflexo de uma grande falta de memória e conhecimento do golpe pela população. “Sofremos as agruras da Lei da Anistia, de 1979, que não puniu o terrorismo de Estado e permitiu que torturadores e saudosistas da violência dos porões retomassem o poder, pela via democrática, em 2018”, completa. Para Yussef, o único caminho para frear a retomada das sombras do golpe e dos discursos de ódio continua sendo pelas vias da Educação.
“Ela tem um poder libertador, desde que haja vontade política. Reformas estruturais, desde a educação básica ao ensino superior, são capazes de criarmos gerações de eleitores e eleitoras pensantes e reflexivas. Além disso, políticas públicas voltadas para a memória, como a identificação de lugares de memórias sensíveis e difíceis, e não mais seu apagamento, podem ser um remédio contra o olvido”, ressalta o pesquisador, que também destaca a necessidade de ação no presente pelos governos em relação aos crimes do golpe.
“Claro, exigir de todos os governos, dos mais conservadores aos mais progressistas, que não se omitam sobre o tema, e aproveitem efemérides como os 60 anos, que serão completados ainda esse mês, do início da sangrenta, persecutória e antidemocrática ditadura de 1964, para expormos essa ferida coletiva.”