CULTURA E CLIMA

Cultura como solução potencial da crise climática

Mudança climática é ameaça constante à direitos fundamentais e ainda à memória de práticas culturais no país, as mesmas que podem salvar ecossistemas

Poluição e mudanças climáticas em ambiente urbano.Créditos: Francisco Anzola via Flickr commons
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O ano de 2024 já está marcado como um ponto de inflexão na história climática do Brasil. Desastres climáticos de proporções inéditas, como as chuvas torrenciais no Rio Grande do Sul que causaram mortes e destruição em massa, e as extensas queimadas que devastaram o Pantanal e o Cerrado, além da seca histórica na Amazônia, que se prolongou por dois anos consecutivos, também desenhou um cenário de escassez hídrica e impactos profundos sobre a vida de ribeirinhos e a biodiversidade. É apenas o início do que ainda está por vir com o cenário de alteração climática no país e no mundo.

Um relatório completo, intitulado “Cultura e Clima” e divulgado no início de novembro pelas organizações C de Cultura e Outra Onda Conteúdo, em parceria com o Instituto Veredas, do qual a Fórum teve acesso, explora as conexões entre o setor cultural e as mudanças climáticas, reunindo a produção literária existente sobre o tema, juntamente com artigos de especialistas, ativistas e representantes de organizações da sociedade civil. Infelizmente, a intersecção entre esses dois temas, que é urgente, ainda é pouco debatida na grande mídia.

A pesquisa mostra que a crise climática é uma ameaça constante aos patrimônios e expressões culturais do país. “No Brasil, existem patrimônios culturais como edificações, centros históricos, ruínas e sítios arqueológicos, bem como manifestações culturais vinculadas a povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, ciganos, extrativistas e comunidades tradicionais diversas, que estão em risco devido às mudanças climáticas”, ressaltou o relatório referente à avaliação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Dados da Confederação Nacional dos Municípios Desastres, incluídos no estudo, mostram que quase 95% dos municípios brasileiros já foram atingidos pelos efeitos climáticos, forçando milhões a deixarem suas casas nos últimos dez anos, com perdas culturais imensas. “Também foram registradas perdas em aldeias indígenas e em lavouras onde são coletados insumos para a produção artística desses povos”, destaca o documento. Como mostrou a Fórum em maio deste ano, mais de 80 aldeias indígenas foram atingidas pelas enchentes do Rio Grande do Sul

“Museus, cadeias de livros, casas de espetáculos, teatros e sedes de coletivos artísticos foram severamente afetados pela inundação”, destacam ainda pesquisadores. “56 bibliotecas, 47 museus, 51 casas de cultura e centros culturais, 31 Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), 25 clubes comunitários e sociedades recreativas culturais, 11 teatros e 8 salas de música e de bandas marciais, entre outros.”

A degradação e a poluição do solo e das águas, fomentadas por grupos economicamente privilegiados, alteram a interação do território com a população que produz cultura a partir dele, afeta especialmente as comunidades mais periféricas e vulneráveis. Os saberes tradicionais dos povos indígenas não apenas refletem uma relação íntima com a terra, mas também sustentam a preservação de culturas, ecossistemas e biomas ao longo de gerações. 

Em 2018, cerca de 370 milhões de indígenas (5% da população global) habitavam mais de 25% das terras disponíveis, garantindo a estabilidade de 80% da biodiversidade global. Além disso, essas comunidades, junto com outros grupos locais, gerenciam 42% dos territórios ecologicamente intactos e 36% das áreas de maior relevância para a biodiversidade mundial, de acordo com o estudo, apresentado no relatório, do International Union for Conservation of Nature (IUCN). No caso brasileiro, por exemplo, 87% dos registros no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético não identificam o conhecimento tradicional associado ao item da biodiversidade cadastrado.

Tanto nas áreas rurais quanto urbanas, os efeitos das crises climática, ambiental, hídrica, política e sanitária se manifestam de maneira intensa. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam que o Brasil enfrenta atualmente cerca de 53 dias anuais de ondas de calor extremo, com previsão de agravamento. Essas condições afetam significativamente trabalhadores expostos ao ar livre, como artistas de rua, especialmente em grandes centros urbanos que sofrem com a falta de planejamento voltado à mitigação e adaptação climática.

No Brasil, o Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) sugeriu medidas para aproximar as agendas culturais e climáticas. Uma das principais recomendações é a elaboração de Planos Nacionais de Ação para as Mudanças Climáticas, abrangendo desde a esfera federal até as localidades, com atenção às especificidades de cada território e uma abordagem ampla e interconectada. 

O comitê também enfatiza a necessidade de criar Programas de Gestão de Riscos para o Patrimônio Cultural Material e Imaterial, baseados em conhecimento técnico e na colaboração ativa das comunidades, utilizando plataformas digitais compartilhadas. Entretanto, a ausência de instituições governamentais que unam formalmente essas duas áreas ainda representa um obstáculo.

Cultura é resposta contra mudanças climáticas

“A cultura é o espírito que anima tudo. As mudanças climáticas são apenas a consequência de um espírito atacado, dilacerado. É um sintoma cuja causa precisa ser combatida”, descreve a ativista indígena e escritora Shirley Krenak no relatório Cultura e Clima. “Se, para alguns, os problemas que vivemos hoje com a emergência climática decorrem das nossas próprias ações, o que estão chamando de ‘antropoceno’, para mim, trata-se de uma situação um pouco mais complexa: um total desequilíbrio e desrespeito com a cultura dos povos indígenas.”

Graças à sua força mobilizadora e ao poder de reconfigurar o imaginário, produções artísticas são capazes de propor estratégias sensíveis e criativas para superar barreiras emocionais, culturais e psicológicas que freiam ações climáticas, incluindo a minimização dos riscos percebidos, convicções pré-existentes, atribuição de responsabilidades a terceiros e a validação do status quo.

Fred_Pinheiro/istockphoto.com

Em uma reportagem da Fórum, publicada no final de novembro, o escritor Victor Hermann destacou que, para efetivamente redistribuir responsabilidades no nível político e social sobre a crise climática, por exemplo, era preciso muita cultura, filosofia e arte. Leia a entrevista completa.

A realização de grandes festivais e a gestão de editais culturais vão muito além da mera execução de projetos artísticos. Em um mundo cada vez mais marcado pelas mudanças climáticas, esses eventos adquirem uma responsabilidade crucial: promover a conscientização ambiental e estimular a adoção de práticas sustentáveis.

Tradicionalmente, a avaliação do impacto ambiental de eventos culturais se limitava a indicadores como a quantidade de lixo produzido ou o número de árvores plantadas. No entanto, essa abordagem superficial se mostra insuficiente diante da complexidade da crise climática.

É preciso ir além das métricas e buscar uma transformação profunda dos comportamentos sociais. Algumas das medidas sugeridas no estudo, são:

  • Estabelecimento de métricas para quantificar, rastrear e relatar o consumo de recursos, emissões de gases e impactos ao meio ambiente por meio da definição de uma linha de base e avaliação do desempenho ao longo do tempo.
  • Utilizar checklists, como a do Ecoprod70, para acompanhar medidas que podem ser implementadas em diferentes etapas da produção cultural.
  • Implementação de política de gestão de resíduos para evitar desperdício de alimentos e não destinar lixo a aterros.
  • Constituição de parcerias com cooperativas de recicladores(as);
  • Promoção do uso de transporte público para diminuir a emissão de gases no deslocamento do público, de artistas ou de equipamentos.
  • Valorização de trabalhos feitos por comunidades que protegem o bioma local onde o evento ocorre.
  • Realização de ações de reflorestamento proporcionais ao impacto do evento.
  • Envolvimento de artistas e profissionais da cultura no desenvolvimento de planos de adaptação e resiliência locais.
  • Mobilização para adaptação de editais culturais considerando medidas alternativas para ondas de calor ou de chuvas excessivas.

Em entrevista concedida aos autores do relatório em outubro, o secretário executivo do Ministério da Cultura, Márcio Tavares, disse que a iniciativa não é apenas para a conscientização a respeito da agenda climática, mas também com saberes e fazeres que propõem uma transformação da relação entre o ser humano e a natureza. 

“Essa pauta é geralmente subjugada pelas urgências dos eventos climáticos extremos — como queimadas, enchentes, tufões, entre outros — que exigem resposta imediata dos órgãos governamentais. Assim, temos direcionado nossa atuação cada vez mais para a articulação com diferentes setores, para ampliar também o debate sobre a contribuição das diversidades culturais presentes no Brasil para as políticas de desenvolvimento, visando à superação das desigualdades e à preservação do meio ambiente”, analisou Tavares. 

“Sem uma política ativa de fomento, comunidades tradicionais, povos originários e quilombolas não têm garantia de alcançar a sustentabilidade, que deve vir por meio de suas próprias expressões e manifestações culturais, e não de atividades predatórias como o garimpo, a exploração das florestas e a poluição das águas. Caso contrário, suas cosmologias correm o risco de serem engolidas pela lógica neoliberal que tem silenciado outras visões e possibilidades de desenvolvimento humano nas últimas décadas.”

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