Na noite de 22 de novembro de 1981, o céu de Recife ficou negro. Na verdade, não só o de Recife, mas foi de lá que saiu a luz que enegreceu o céu brasileiro. Na semana em que, pela primeira vez, celebra-se o Dia da Consciência Negra como feriado nacional, vale recordarmos a missa mais negra que o Brasil já teve e que até hoje reverbera: com a coragem e o talento de Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020), Pedro Tierra e Milton Nascimento, aquela eucaristia viva e preta desafiou os dogmas de um regime autoritário e de parte de uma igreja que, resistente, se aliava aos mais pobres através da Teologia da Libertação.
Naquela noite, a capital pernambucana acolheu 8 mil pessoas para celebrar ao ar livre a “Missa dos Quilombos”. Enfrentaram a ditadura fascista e a mentalidade perversa e opressora contra os trabalhadores. A missa, diferente do que os conservadores do Vaticano estavam acostumados a ver, combinava cânticos católicos com batuques afro e a mistura de sons da música de Milton Nascimento com a poesia vigorosa de Casaldáliga e Tierra, resultando em um sincretismo religioso inédito em uma celebração da Igreja Católica.
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As músicas, cantadas pela potente e única voz de Milton e as vozes dos padres “vermelhos” Dom Hélder Câmara e Dom José Maria Pires, que era arcebispo da Paraíba, conhecido como Dom Pelé (que a partir da Missa se autodenominou Dom Zumbi), um dos raros bispos negros do país, criaram uma comunhão perfeita em defesa da liberdade, dos direitos humanos e do respeito à vida de todos. A missa ocorreu dois dias após o 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, preso e morto em 1695 pelos repressores a serviço da corte portuguesa. Além disso a celebração aconteceu na Praça do Carmo, local onde a cabeça de Zumbi foi exposta por ocasião de seu assassinato.
A Missa dos Quilombos foi, em sua essência, um pedido de desculpas da ala progressista da Igreja Católica no Brasil ao povo negro. E tudo foi feito mantendo intacta a liturgia romana, mas expandindo seus limites até então conservados, ao trazer para o altar a população afro-brasileira com suas culturas e suas dores, muitas delas causadas pela própria Igreja.
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“Pretos, meus irmãos, estamos presenciando, hoje e aqui, os sinais de uma nova aurora que vem despertar para a Igreja de Jesus Cristo. No passado, ela não se mostrou suficientemente solidária com a causa dos escravos. Não condenou a escravidão do negro, não denunciou as torturas, não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los e destruí-los. A igreja não estava com os negros, e hoje parece que começa a estar. Começa a nos querer bem, a respeitar nossa cultura e não tratá-la mais como grosseira superstição. A Igreja começa a ficar do nosso lado e a nos ajudar a ressuscitar a nossa memória histórica, a incentivar a nossa organização.”
O texto autocrítico é a introdução da homilia de dom José Maria Pires, o dom Zumbi, que, naquele contexto, começava a ser reconhecido como “o bispo da causa negra” dentro da Igreja Católica no Brasil. “Se a igreja da época tivesse marcado mais presença nas senzalas do que na casa-grande, mais nos quilombos do que nas cortes, outros teriam sido os rumos da história do Brasil desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição do negro ao nosso desenvolvimento”, refletiu o arcebispo em outro momento de sua pregação.
Foi nesse "ambiente opressivo da ditadura militar, já em declínio", que "um negro – uma das mais altas expressões do talento, sensibilidade, criatividade e voz na história da música brasileira –, um catalão errante que fez do Araguaia sua pátria e um sertanejo recém-libertado das prisões ofereceram sua contribuição e seus versos para introduzir em espaços sociais e culturais mais amplos um tema proibido na sociedade brasileira: o combate ao racismo", escreveu o poeta Pedro Tierra sobre a celebração eucarística que abalou as mentes conservadoras do Vaticano.
As músicas que foram compostas para a “Missa dos Quilombos” deram origem ao disco homônimo, lançado em 1982 como um marco na Música Popular Brasileira, com as vigorosas melodias de Milton Nascimento, misturando rock, sons regionais de Minas Gerais, música latino-americana e MPB com os batuques dos africanos escravizados por quase quatro séculos, no último país do Ocidente a abolir a escravidão.
Mais que uma missa, a eucaristia significou e ainda significa um ato revolucionário ao enfrentar os generais no poder e cantar a dor de um povo humilhado, aprisionado, torturado, faminto e escravizado, mas que merece ser feliz e um dia se unirá para isso. O ato religioso denunciou a visão errada do cristianismo que permitiu, e ainda permite, a transformação de pessoas em propriedades de outras pessoas, que permite a usurpação em nome de Deus, a acumulação de riquezas, que promove a destruição do planeta e da humanidade.
Uma missa “comunista”
Chamada de subversiva, revolucionária e comunista, apesar de os termos poderem ter significados semelhantes, a Missa dos Quilombos foi envolta em tensões. Bituca relembra que cartazes de divulgação espalhados pela cidade – com a imagem de uma mão negra segurando uma cruz com o punho fechado – foram adulterados para parecer que a mão segurava uma foice e um martelo, numa tentativa de associar a celebração ao comunismo. Além disso, houve uma ameaça de bomba no altar.
Na edição de 25 de novembro de 1981 do Diário de Pernambuco, a coluna Diário Político publicou o seguinte comentário: “Na badalada ‘missa negra’ vimos mais brancos do que propriamente ‘negros’. E os brancos se deliciaram com o bamboleio de negras e mulatas, que se mexiam e se contorciam não se oferecendo a Deus, mas, ao que parece, aos descendentes de antigos senhores de escravos”. Também afirmou que dom Zumbi misturou Karl Marx com Cristo.
“Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama”, exaltou-se dom Helder Câmara em um trecho de sua Invocação à Mariama, uma das partes mais emocionantes da celebração.
Proibição do Vaticano
Após a celebração da missa, fiéis mais conservadores expressaram seu desagrado com os discursos proferidos, especialmente com a inclusão de elementos das culturas e mitologias africanas, que, segundo eles, violavam os princípios da Igreja Católica. Além das danças, vestimentas e do uso de instrumentos como atabaques e ganzás, alimentos foram oferecidos durante o Ofertório. As letras das músicas mencionavam, entre outros, Olorum (criador do mundo e dos orixás), os orixás Obatalá e Xangô, Oló (império iorubá na África Ocidental, no século XV) e Aruanda – um conceito espiritual na umbanda.
As críticas chegaram ao Vaticano, e em julho de 1982, a imprensa brasileira divulgou uma carta da Congregação do Culto Divino da Santa Sé enviada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que ordenava a proibição das missas da Terra Sem Males, dos Quilombos e da Esperança, que visavam pedir perdão às mulheres pela opressão histórica, mas que, de fato, não se concretizou. O caso gerou grande repercussão na mídia nacional, com padres e bispos debatendo a questão publicamente, tanto a favor quanto contra.
A força da crença em uma igreja dedicada aos mais necessitados, a Missa dos Quilombos denunciou também a ditadura, o racismo forjado pelos grilhões da senzala em benefício da casa grande, como se fosse natural a escravidão. Mais que tudo, a missa vislumbrou o futuro. "Um mundo sem senhores e sem escravos. Um mundo de irmãos", como disse em seu sermão Dom Hélder Câmara. E não é por isso que se luta ainda hoje?
"Estamos chegando do chão dos quilombos,
estamos chegando no som dos tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar."
Apresentação
Fechamos a matéria com a apresentação magnífica de Dom Pedro Casaldáliga ao disco/celebração “Missa dos Quilombos”:
Em nome de um deus supostamente branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vem sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na América, na Africa mãe, no Mundo.
Deportados, como "peças", da ancestral Aruanda, encheram de mão de obra barata os canaviais e as minas e encheram as senzalas de indivíduos desaculturados, clandestinos, inviáveis. (Enchem ainda de sub-gente -para os brancos senhores e as brancas madames e a lei dos brancos- as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes).
Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles, o Sinai Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, "em nome do Deus de todos os nomes", "que fez toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue".
Vindos "do fundo da terra", "da carne do açoite", "do exilio da vida", os Negros resolveram forçar "os novos Albores" e reconquistar Palmares e voltar a Aruanda.
E estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões -em casa, na rua, no trabalho, na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Esperança.
Para escândalo de muitos fariseus e para alívio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da História, esta máxima culpa cristã.
Na música do negro mineiro Milton e de seus cantores e tocadores, oferece ao único Senhor "o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares".
E garante ao Povo Negro a Paz conquistada da Libertação. Pelos rios de sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem "sem figura humana", sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia e da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.
Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição do Cristo.
Pedro Tierra e eu, já emprestamos nossa palavra, iradamente fraterna, à Causa dos Povos Indígenas, com a "Missa da Terra sem males", emprestamos agora a mesma palavra à Causa do Povo Negro, com esta Missa dos Quilombos.
Está na hora de cantar o Quilombo que vem vindo: está na hora de celebrar a Missa dos Quilombos, em rebelde esperança, com todos "os Negros da Africa, os Afros da América, os Negros do Mundo, na Aliança com todos os Pobres da Terra".
Pedro Casaldáliga