FÉ PÚBLICA E INJUSTIÇA

EXCLUSIVO: A história da jovem que passeava com o cachorro, foi presa pela PM e acusada de roubar um carro

A Revista Fórum conversou com o João Gilberto, primo da jovem, que lutou para provar sua inocência; A injustiça passada por Rafaella, que é técnica de enfermagem, infelizmente se faz cotidiana nas periferias das cidades brasileiras

Rafaela da Silva Pereira Lima, João Gilberto Costa da Silva e Gabriel Pereira da Cruz.Créditos: Arquivo pessoal/João Gilberto Costa da Silva
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"Estava no lugar errado e na hora errada", é a frase que geralmente ouvimos para justificar alguma situação de injustiça, abuso ou violência cometida pelas polícias militares nas periferias das cidades brasileiras. Foi justamente uma dessas histórias a de Rafaela da Silva Pereira Lima, de 23 anos, técnica de enfermagem e moradora do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, onde nasceu e cresceu.

No último dia 10 de setembro, um domingo, ela estava passeando com o seu cachorro ao lado do primo Gabriel Pereira da Cruz, quando um veículo que havia sido roubado e estava em fuga parou e os ladrões fugiram a pé. Atrasada, a Polícia Militar não encontrou os criminosos, mas viu Rafaela e Gabriel ali, encolhidos em um canto, temerosos a respeito de uma possível troca de tiros entre 'mocinhos' e 'bandidos'. Os policiais então resolveram prendê-los e acusá-los do furto do veículo.

Com os verdadeiros assaltantes já longe do radar, e após uma perseguição que terminou com um motociclista (que não tinha nada a ver com a história) gravemente ferido, os PMs envolvidos na perseguição quase conseguiram "empurrar o B.O.", como se diz na gíria local, para a dupla. Mas um outro primo de Rafaela e Gabriel, João Gilberto Costa da Silva, estava no caminho deles. Ele lutou para provar a inocência da dupla, e venceu. Passados dias da soltura dos familiares, João Gilberto contou a história com detalhes à Revista Fórum.

Naquele final de semana, Gilberto tinha viajado para Ubatuba. A viagem tinha como objetivo aproveitar a praia e o calor fora de época com familiares. A mãe da Rafaela, inclusive, foi junto, além da esposa e do filho dele. A previsão era voltar na primeira hora do dia, já na segunda-feira, para chegar cedo em casa. Mas a subida da serra acabou antecipada.

"Quando eu me preparava para dormir, uma vizinha me ligou dizendo que a Rafaela tinha sido abordada pela polícia na rua de casa. Pedi para falar com o policial, que me disse que ela estava sendo presa por estar dirigindo um carro roubado ao lado do namorado. Achei estranho, primeiro porque ela nunca roubaria um carro, e segundo porque ela é solteira, não tem namorado. Voltei para São Paulo na mesma hora, eram umas 8 da noite, mas só cheguei em São Paulo perto das 5 da manhã porque estava tudo parado para subir a serra", contou.

Ele para a narrativa e explica que Rafaela acabou de terminar o curso de técnica de enfermagem e trabalha em uma empresa de seguro de carros para se manter. Buscando uma vida melhor e percebendo que a carreira de técnica de enfermagem não é das que pagam os melhores salários, a jovem logo ingressou na faculdade de enfermagem, onde é bolsista.

"Ela tem notas boas e não pode falta à aula porque é bolsista. É uma menina incrível, frequenta a igreja e ajuda todo mundo que pode. Ela no domingo falou brincando que aproveitaria a saída da mãe para a praia e faria uma festa na casa da família", conta.

Mas apesar das brincadeiras, Rafaela realmente aproveitou o domingão em casa com a irmã Vitória e amigos, entre eles Gabriel. Fizeram um almoço, conversaram, gravaram vídeos para as redes sociais e deram muitas risadas. No final da tarde saíram para dar voltas de moto – todas devidamente rastreadas pelo seguro e filmadas pelas câmeras de segurança da região – e logo em seguida voltaram para casa. Rafaela entrou em casa às 8h10 da noite, momento exato em que sua irmã estava pedindo um Uber para ir embora.

Àquela altura o assalto já havia acontecido em um local próximo dali. O Ônix prata de placa SID-0F95 fora subtraído de outro motorista da Uber que começaria uma viagem na região e estava em fuga. Durante a perseguição, chocou-se com outro veículo e, além disso, os próprios policiais militares que perseguiam os ladrões acabaram atropelando o motociclista Wellington Santana Fraga da Silva, que nada tinha a ver com o assalto ou com Rafaela, e, gravemente ferido, veio a perder uma perna.

De volta à rua de Rafaela, enquanto sua irmã Vitória e o amigo Lucas esperavam pelo Uber, que chegaria às 20h15, em ponto, Rafaela e Gabriel resolveram fazer companhia à dupla e, de posse do cachorro da família, resolveram dar uma volta. Mas no exato momento em que o Uber de Vitória acabava de partir, o Ônix prata em fuga entrava pela contramão e estacionava na rua de Rafaela. E os ocupantes do veículo o abandonavam para fugir a pé.

"A Força Tática estava colada no carro dos bandidos. Bastava terem descido e perseguido eles a pé. Mas infelizmente não fizeram isso. A Rafaela foi acusada pelo dono do carro, de ter chamado o Uber para os ladrões assaltarem. Mas se às 8h06 da noite ela estava andando de moto, e isso está provado pelo próprio rastreador da moto, como que ela foi posta na cena do crime?", questionou.

João Gilberto conta que Rafaela viu a movimentação estranha na rua. Vendo os ladrões entrando na rua pela contramão e, logo em seguida, a Força Tática entrando na mão certa, ela temeu um tiroteio e, junto com Gabriel e o cachorro, se escondeu atrás de um caminhão.

Os dois foram abordados e, num primeiro momento, os policiais acusaram Rafaela de estar dirigindo o carro. Uma vez na delegacia, Gabriel se transformou no motorista do veículo e Rafaela seria sua cúmplice, segundo os PMs.

Perguntado sobre o porquê das acusações, João Gilberto responde: "É uma pergunta que a gente se faz. Muita gente falou que eles precisavam de um culpado. Alguém precisava assumir essa culpa porque na perseguição atropelaram um motociclista que veio a perder a perna".

Rafaela foi levada à delegacia, indiciada e, em seguida, entrou no 'bonde' - os insalubres transportes para presos - direto para o Centro de Detenção Provisória (CDP) de Franco da Rocha, no interior de São Paulo. A partir daí, foram dias em que João Gilberto não dormiu. Entre a segunda-feira (11) e a quinta (14), ele correu atrás de relatos de vizinhos, câmeras de segurança da região e dados das redes sociais e do rastreador da moto de Rafaela. Mesmo após reunir o material, não foi possível obter a soltura de Rafaela e Gabriel.

As investigações familiares continuaram e João Gilberto conseguiu encontrar a usuária da Uber que havia pedido a viagem com o motorista do Ônix prata, que acabou roubado. Ficou provado que não tinha sido Rafaela a autora do pedido de viagem. Mais tarde, encontrou um vídeo que mostrava a fuga a pé dos assaltantes após o abandono do veículo.

Rafaela e Gabriel acabaram soltos na última sexta-feira (15), mas não foi fácil. João e os familiares tiveram de se desdobrar uma vez mais para pressionar a juíza do caso a assinar a soltura, convencer os funcionários a esperarem "só mais meia hora" para receberem o pedido e viajar até o presídio, para finalmente soltar Rafaela de uma prisão que jamais deveria ter sido submetida.

"Graças a Deus conseguimos tirar ela de lá e voltamos para casa. Foi emocionante. Ela chorou muito, todo mundo chorou. Ela começou a relatar tudo o que aconteceu. No dia seguinte fizemos uma festa em casa para ela, que foi recebida com fogos", conta João Gilberto.

Agora, Rafaela e sua família lutam para que as acusações sejam extintas e para que o Estado de São Paulo dê explicações sobre a conduta dos policiais. Mesmo reconhecendo a acusação estapafúrdia da parte dos agentes e soltando os jovens da injusta prisão, o Estado de São Paulo lhes roubou alguns dias de vida. Pior do que isso, passaram por situações que dificilmente serão superadas no curto prazo.

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