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Ex-aluna denuncia escola cívico-militar: “Estão mais preocupados com piercing do que com acesso à educação”

Adolescente diz que sonhava tornar-se policial, mas desistiu do projeto após se decepcionar na instituição; “O que aconteceu comigo foi leve, tem relatos muito piores”

Alunos da E.E. Maria José fazem performance contra o projeto Escola Sem Partido em SP. Dezembro de 2015.Imagem ilustrativaCréditos: Raphael Sanz
Escrito en BRASIL el

Patrícia* tem 16 anos e vive na zona rural de uma capital brasileira. No período da tarde trabalhava em uma loja no centro da cidade para ajudar a família e tinha muitas dificuldades de encontrar uma escola com o horário da manhã vago, para que pudesse estudar sem precisar deixar o emprego. Após muita procura, conseguiu uma vaga em uma escola cívico-militar, gerida pela Polícia Militar local, em município da região metropolitana da capital onde vive. A distancia entre seu bairro e a nova escola era de 50 quilômetros.

Ela relata que acordava todos os dias às 4 horas da manhã para tomar a condução e chegar à escola cívico-militar antes das 7h15, que é quando começa a primeira aula e o portão se fecha.

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“Às vezes eu chegava com um minuto de atraso, literalmente, chegava sete e dezesseis, e era barrada por um minuto. Cheguei a questionar o por quê eles não deixavam entrar, já que deveria ter minutos de tolerância, mas nunca justificavam de fato. Isso aconteceu muitas vezes, se o metrô atrasava tinha que ficar lá esperando outro horário”, relata a adolescente para a Revista Fórum.

Ela conta que às 7h15 era a hora de “entrar em forma”. Esse é um momento quase ‘espiritual’ para os policiais militares, pois é quando enfileiram os alunos da referida escola para que prestem continência antes das aulas começarem. Segundo a percepção da aluna Patrícia e também de pesquisadores da área, como a pedagoga e doutora em educação, Catarina de Almeida Santos, tais praticas militarizadas não condizem com o que se espera do ambiente escolar e muitas vezes colocam os ideais de disciplina e rigidez por cima do próprio acesso à educação, que é o principal objetivo da escola pública.

“Na escola, a perspectiva de disciplina com a qual trabalhamos é a da capacidade de formar sujeitos para conviver e respeitar coletivamente, viver em sociedade. A lógica da disciplina escolar é o aprendizado do respeito. Conviver e respeitar uns aos outros, não porque alguém armado diz para fazer aquilo, mas sim porque temos respeito pelo outro, o que é diferente. Na escola militarizada, isso inverte. É a lógica do bater continência, obedecer comando, da uniformização, da negação do sujeito. Quando você tenta padronizar todo mundo, você está negando a diversidade, o diverso dentro da escola”, disse Catarina de Almeida Santos em entrevista à Revista Fórum.

“Expulsa” da escola cívico-militar

Foi nesse contexto de apelo a uma disciplina que simplesmente não cabe em jovens dessa idade, que os PMs - que faturam uma bela cifra do Estado para estarem onde não deveriam estar – criaram uma situação que tornou impossível a permanência de Patrícia naquela instituição. E tudo por conta de um piercing.

“Tinha ido para a escola em um dia normal e tinha que imprimir um documento, então a minha mãe foi comigo. Perguntei ao policial onde poderia imprimir o documento, mas ele olhou pra mim e disse: ‘e esse piercing aí?’, e pediu para eu tirar antes de entrar na sala. Mas estava gripada e o piercing tinha inflamado por dentro, não dava para tirar, precisava esperar desinflamar”, conta Patrícia.

Ela fez o trâmite do documento com a mãe e saiu do radar do policial por alguns momentos, tendo conseguido entrar na sala de aula. “Ele então foi de sala em sala com a minha mãe, me procurando, dizendo que era para eu entregar de novo o mesmo documento, mas não era isso, ele queria mesmo era ver se eu estava com o piercing”, contou.

Quando a encontrou, o PM não quis nem saber e deu o ultimato: ou tira o piercing ou sequer entra na escola. Ela tentou argumentar que estava inflamado, em vão. Nesse momento, Patrícia conta que começou a chorar, pois aquela era a única escola que poderia estudar sem ter que abandonar o emprego.

“Sorte que minha mãe estava lá, senão eu teria que voltar sozinha, e é perigoso. Fiquei bem traumatizada com isso. Mudei de escola, não tinha turno da manhã, e acabei saindo do emprego. Sinceramente acho que poucas pessoas teriam disposição de acordar tão cedo para estudar, trabalhar, chegando super tarde, e se manter na linha. Eu vivo estudando, tenho mais de 30 cursos, sou destaque desde o sexto ano, mas o absurdo é eu estar usando um piercing”, desabafou a estudante.

Desistiu de ser policial

Patrícia ainda conta que sonhava em ser policial, mas ficou tão traumatizada com a experiência na escola cívico-militar, que desistiu do projeto.

“Eu me pergunto quando que uma escola começou a cobrar mais e se importar mais com acessórios como piercings e colares que os alunos usam do que com a própria educação. Quanto antes acabarem as escolas cívico-militares, melhor. Lá dentro tive a certeza que os alunos pegam trauma dos policiais, que por sua vez passam a imagem de serem pessoas agressivas e intolerantes. O que aconteceu comigo foi leve, tem relatos muito piores”, concluiu a estudante, que agora tenta reorganizar a própria vida.

Catarina de Almeida Santos faz uma observação sobre este caso e outros semelhantes, que tem acompanhado. "Em todos casos as vítimas saem da escola, sejam alunos ou docentes, e a polícia fica. São sempre os sujeitos da escola que se enquadram aos ditames das forças e não seus agentes que se adaptam as escolas. Continua a lógica do 'pede pra sair', quem não se adequar ao projeto não cabe na escola ou só fica la quem se adéqua à forma dos militares e seus princípios", explicou.

*O nome da estudante foi trocado para manter seu anonimato, assim como foi omitida sua cidade de residência e a escola cívico-militar referida. A conversa foi gravada e a história verificada.