Na noite de domingo (30), o Fantástico, da TV Globo, exibiu uma reportagem mostrando as entranhas de uma rede social que ameaça a civilidade nas mais diversas sociedades mundo afora. O Discord, uma plataforma de troca de mensagens que permite transmissões em vídeo ao vivo, tornou-se uma espécie de centro nervoso para proliferação de todo tipo de conteúdo violento abjeto e é o espaço preferido de radicais de extrema direita que veem nela um território sem lei para agirem impondo, estimulando e disseminando as mais brutais e dantescas práticas.
Recentemente o Discord voltou à baila após uma sequência de ataques a escolas no Brasil, que resultaram inclusive na morte de uma professora em São Paulo e de outras quatro crianças, assassinadas a machadas numa creche, em Blumenau (SC), além de feridos num colégio de Santa Tereza de Goiás (GO). Foi no Discord que um tal ‘desafio’, determinado pelos ‘líderes’ de comunidades extremistas a seus seguidores submissos, deu início a toda a barbárie vivida no país em abril.
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A reportagem do Fantástico mostrou toda gama de barbaridades. De garotas que se automutilam, inclusive na genitália, passando pelo caso de uma menina de 13 anos que põe fogo na própria casa, até mesmo inúmeros episódios de tortura extrema com animais, como o esquartejamento de cachorros, a queima de um gato vivo e toda infinidade de sadismo.
O repórter Estevan Muniz, autor da matéria, fica atordoado com o que vê. As cenas são de violência extrema e dezenas de usuários simplesmente se divertem gargalhando com os atos horrendos e sanguinários. Um garoto de 13 anos parece com uma suástica no rosto, coberto parcialmente por uma balaclava de caveira (igual às usadas em massacres escolares) e com uma faca faz o gesto Hiel Hitler.
O Discord há algum tempo vem sendo alvo de ações das autoridades dos EUA e na Justiça está sendo acionado pela família de uma criança de 11 anos que estava sendo explorada sexualmente na plataforma. Por aqui, inúmeras medidas surgiram nas últimas semanas para tentar frear as toneladas de absurdos criminosos despejados nessa rede, sobretudo por jovens e adolescentes.
A empresa de tecnologia se defendeu das últimas acusações e numa nota oficial disse que “está colaborando ativamente com o governo e agências de aplicação da lei no Brasil e nos Estados Unidos, enquanto trabalha para o objetivo comum de prevenir danos”.
Em 13 de abril, no auge dos ataques e ameaças contra estabelecimentos educacionais no Brasil, a Fórum já trazia reportagens e artigos sobre o Discord. Numa delas, o repórter Yuri Ferreira mostrou o que viu (e não queria ter visto) nesse campo livre de regras que fomenta abertamente a violência e os atos mais extremos entre os jovens.
O que vi - e não queria - no Discord, rede onde se propagam ataques a escolas
O Discord é uma rede social utilizada por gamers, empresas e jovens de todo o mundo para facilitar a comunicação coletiva. A rede social se tornou um importante canal após a pandemia por permitir uma espécie de "supergrupo" de WhatsApp.
Os servidores (ou grupos) podem ser separados por temas e abrigar centenas de pessoas, permitem chat em áudio, vídeo, compartilhamento de documentos e possuem bots especializados para uma série de situações.
O Discord é uma baita plataforma na questão tecnológica e, não à toa, é um sucesso entre os mais jovens.
Eu já havia usado a rede em outras ocasiões, foi-me útil para matérias jornalísticas, conversas em grupo no meio da pandemia e até para fazer novos amigos em sessões de jogos on-line, como Among Us ou Jackbox.
Mas, após um papo com alguns conhecidos e a aparição do chamado "desafio do Discord" na mídia, decidi entrar em alguns servidores para ver como o discurso da alt-right estava instaurado na rede.
Bastou uma pesquisa de cinco minutos no Google para entrar nos grupos da extrema direita. Entrei em três servidores abertos e, caro leitor, de verdade, eu não esperava que fosse tão bizarro assim.
AVISO DE GATILHO: A partir daqui, o texto contará com termos extremos, com conteúdo misógino, racista, antissemita, pedófilo, suicida e neonazista. Sério.
Ingressei em um grupo, identificado a partir de algumas gírias do universo channer, já estranhei alguns nomes de usuário. “Judeu estuprador”, “Nazipardo”, “Favelado Judeu”, etc. Os bots do grupo, utilizados para facilitar a comunicação e adicionar features ao servidor, eram batizados com temas de ode à pedofilia: AdoroPedofilia, invitepedofilo, PedoMusic e PedoBoard.
Em outro servidor, os membros do grupo citam tentativas de suicídio e automutilação, endossam o assassinato de mulheres e negros e publicam vídeos de negação do Holocausto.
Uma mensagem me surpreendeu: com a foto de perfil de Bolsonaro, o sujeito postou um vídeo de propaganda neonazi com suásticas e o rosto de Heinrich Himmler, comandante do Exército de Reserva e general plenipotenciário do Terceiro Reich.
Outro usuário saudou o professor que elogiou Hitler em uma sala de aula em Santa Catarina. Em outros momentos, usuários se desafiam ao suicídio on-line.
Entre os conteúdos citados estão materiais de pornografia infantil — abreviadamente, CP —, conteúdo neonazista e muito, mas muito gore, isto é, imagens de pessoas sangrando, sendo vítimas de crimes violentos, além de pornografia com coprofilia e zoofilia.
O que mais me surpreendeu não foi o conteúdo, mas sim a extrema similaridade compartilhada entre os grupos e o universo channer. Há uma roupagem de humor que paira sobre servidores e usuários, que se divertem com o conteúdo "edgy".
O termo "edgy" vem do inglês e é um sinônimo para o humor que vai até o limite — edge — do "politicamente correto". Os limites humorísticos acabam se tornando um subterfúgio para conteúdo abertamente nazista.
Em cada servidor, estavam cerca de 110 ou 120 usuários, totalizando pouco mais de 400 pessoas. Ao longo das conversas, percebi também a presença de servidores fechados, como o 'Brasil Reich', ou seja, a rede pode atingir milhares de usuários.
Esses grupos estão aí na internet desde que eu tinha 11 anos de idade. Alguns se esconderam na deep web, outros se mantêm na superfície. Eles usam os mesmos termos de dez anos atrás e as mesmas táticas de dez anos atrás. Continua funcionando. E as autoridades seguem tomando um baile dessa organização.
Os conteúdos de suicídio, automutilação e gore indicam problemas psicossociais graves nesses jovens, embriagados no humor e na ideologia da extrema direita.
Contudo, o debate também não pode cair no pânico moral. O "desafio do Discord" não é uma "Baleia Azul" ou um "Obedece a La Morsa". Não é um hoax feito para criar pânico. De fato, a extrema direita está presente na rede social, agindo com conteúdo perigoso.
Mas não é só pânico. Isto também merece um alerta: o fato de seu filho ou sua filha ter uma conta no Discord não é um indicativo de que ele/ela é de extrema direita ou um/a neonazi. A maioria extensa dos grupos do Discord têm focos diversos e muitos são enriquecedores e importantes. O fundamental é saber com quem e o que seu filho anda falando na internet.
O Discord foi contatado para esta e para futuras reportagens, mas ainda não respondeu a nossa solicitação. Seguiremos de olho. Os canais foram denunciados para o Ministério da Justiça.