No Rio de Janeiro, no ABC Paulista, em Salvador, em Buenos Aires, dentro de igrejas, em pequenos consultórios médicos e até mesmo em fazendas no interior do Brasil: não havia cidade, país ou local onde a Igreja Universal do Reino de Deus não constrangesse seus pastores, os menos importantes hierarquicamente, a realizarem operações de vasectomia antes de se casarem. Tamanho escândalo começa a ganhar proporções com o aparecimento de relatos de ex-pastores na imprensa e o andamento de uma série de ações na Justiça.
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Para quem acompanha o dia a dia da Igreja Universal do Reino de Deus, a imposição da vasectomia aos pastores é prática conhecida. E recomendar tal cirurgia não é ilegal. No entanto, conforme o volume de processos judiciais envolvendo o tema vai avançando, além dos depoimentos de uma série de pastores e pessoas ligadas à IURD, publicados nesta segunda-feira (17) no The Intercept Brasil, as condições nas quais os exames foram feitos, bem como as estratégias para convencer os religiosos, aparecem para o público como não sendo as ideais e previstas tanto pela legislação como pela classe médica.
Em reportagem de outubro de 2014 no canal do Tribunal Superior do Trabalho, um ex-pastor que atuava em Itapevi, na Grande São Paulo, ganhou ação na Justiça do Trabalho contra IURD. Ele ganhava R$ 1 mil mensais como pastor no templo onde atuou por dois anos. Ao receber a proposta de promoção, se tornaria bispo na África, animou-se. No entanto, uma das condições para o cargo era fazer uma vasectomia. De acordo com a Igreja, ele não poderia ter filhos pois o cargo exigiria muita dedicação.
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O homem então fez a cirurgia e frustrou os planos da esposa, que queria ser mãe. Revoltada, pediu o divórcio e a família foi desfeita. No processo, a Igreja Universal argumentou que a vasectomia foi uma decisão do então pastor, mas a Justiça não acatou a alegação, qualificou a conduta da igreja como reprovável e deu ganho de causa ao ex-pastor, que recebeu uma indenização de R$ 100 mil.
Dessa vez, em pleno 2023, um dos pastores que passou situação semelhante é Ricardo Vasconcelos Lima. Ao Intercept ele contou que quando tinha 24 anos passou por uma vasectomia dentro de um escritório da Igreja Universal em Buenos Aires, na Argentina. Um médico brasileiro teria feito uma “baciada” de vasectomia naquela data, operando Ricardo e cerca de outros 20 pastores. Relatou ainda que sentiu muitas dores por conta do frio que fazia na capital argentina e do pouco tempo de recuperação a que teve direito.
O pastor pregou na Colômbia, Uruguai e Argentina durante sua trajetória na IURD e acaba de ganhar uma ação contra a Igreja Universal na 17ª Vara Trabalhista de Fortaleza. A decisão obriga a instituição de Edir Macedo a pagar R$ 1,2 milhão a Lima, valor que soma direitos trabalhistas e danos morais por conta da vasectomia.
A vasectomia
A operação de esterilização masculina, a vasectomia, é relativamente simples e rápida. O paciente recebe uma anestesia local, ou seja, na região da virilha e das genitais, e espera um pouquinho até que comece a surtir seu efeito. Antes disso, faz um pré-operatório que conta com exame de urina, espermograma, hemograma e repouso preliminar de até uma semana.
Em seguida, o precedimento que dura de 15 a 20 prevê a retirada de um pequeno pedaço do canal que liga os testículos ao pênis. Dessa maneira, o homem que passou pela cirurgia pode ter uma vida sexual normal, no entanto não fertilizará sua parceira. A recuperação dura aproximadamente 10 dias e exige apenas repouso.
A cirurgia não exige a internação do paciente, podendo ser realizada em um consultório simples. No entanto, existem regras, protocolos e recomendações para que seja realizada. É preciso seguir um padrão mínimo de qualificação profissional, equipamentos e, é claro, ter um prontuário do paciente disponível para ser apresentado.
Além disso, de acordo com a Lei do Planejamento Familiar, para fazer uma vasectomia é preciso ser maior de 21 anos ou, no caso de homens mais novos, ter dois filhos vivos. Também é necessária a assinatura de um termo de consentimento em que o paciente confirma que realmente deseja fazê-la.
Ex-pastores denunciam igreja
Assim como Lima, dezenas de outros ex-pastores têm levado a IURD aos tribunais e à imprensa com semelhantes acusações. As sessões de vasectomia contariam, em muitos casos, com até 30 cirurgias de uma só vez. As vasectomias em massa podem ser feitas em clínicas médicas populares, consultórios de dentistas, escritórios da própria igreja, templos, emissoras de rádio e fazendas. As acusações dos ex-pastores são de que o procedimento teria sido tratado como obrigatório por parte da Igreja e que mesmo assim as operações não seguiram os protocolos médicos. Em muitos casos com equipamentos inadequados.
Clínicas que realizaram ou seguem realizando os procedimentos para a Igreja Universal começaram a ser notificadas pelo Judiciário, que exigia os prontuários dos pacientes. Só no Rio de Janeiro, o Tribunal Regional do Trabalho exigiu que uma delas, a Serviços de Cirurgia Geral Norte, localizada no bairro do Méier e apontada como uma das principais da IURD na capital fluminense, fornecesse o prontuário de Jonathas Costa Azeredo, Ivo Francisco de Sá Júnior e Luciano Garibaldo, todos ex-pastores, sob pena de incorrer em crime de desobediência no caso de não entrega.
Os prontuários foram entregues e, além desta clínica, há outras apontadas como os principais centros de vasectomia da IURD. Entre elas estaria o Centro Médico Neomater, em São Bernardo do Campo no ABC Paulista. Mas não eram apenas clínicas. Luis Alberto Santos Bispo, que foi pastor da IURD por 17 anos, contou que nos anos 1990 e começo dos 2000 as vasectomias eram feitas em “locais diversos sem nenhum cuidado”.
Santos Bispo foi obrigado a realizar o procedimento no Centro Médico Garibaldi, em Salvador, há 13 anos, e afirma: “Hoje, pastor solteiro só casa se fizer a cirurgia. Muitos colegas fizeram a vasectomia na antiga Rádio Bahia, na Ladeira dos Aflitos, onde funciona uma empresa de segurança da Universal. E ouvíamos relatos do pessoal mais antigo sobre cirurgias em fazendas no interior do estado”.
‘Motivação’ e condições para a vasectomia
Outro pastor, que não foi identificado na imprensa, afirmou ter realizado a vasectomia em 1999, no Centro Médico Neomater, em São Bernardo do Campo. Ele afirma que os pastores que se negassem a passar pela cirurgia seriam relegados funções menos “exaltadas” dentro do Império da Universal, como motoristas nas emissoras de Rádio e TV, garagista ou faxineiro. As acusações foram protocoladas junto ao Ministério Público em setembro do ano passado.
“Pastores só podem se casar após fazer a cirurgia pois o bispo Edir Macedo não admite que os pastores tenham filhos, salvo alguns membros da cúpula da Igreja. Fui pressionado e aterrorizado por horas para fazer a cirurgia”, declarou.
Ele ainda contou que no dia da operação estava com mais 10 colegas. Todos foram “amontoados” nos fundos de uma clínica, em local que considera insalubre e sem aparelhagem adequada. Os pastores eram postos em macas com a roupa do corpo, anestesiados e, ali mesmo, “vasectomizados” (SIC). Não havia fichas médicas e não foi pedida a apresentação de documentos. Ao final, ele relata que a anestesia não fez efeito.
“Os pontos sangravam, não tínhamos curativos, apenas gazes dentro da roupa e os comprimidos. Em casa teve uma inflamação no local da cirurgia, infeccionou e levei quatro meses para me recuperar. Até hoje sinto dores fortes e desconforto”, diz o pastor na denúncia protocolada.
Universal nega acusações
Em nota à imprensa, a Igreja Universal nega que imponha a realização da vasectomia. De acordo com a nota, o que a instituição faria é “estimular o planejamento familiar, debatido de forma responsável por cada casal".
“A Igreja Universal esclarece, mais uma vez – o que já é público e o jornalista parece demonstrar esforço para ignorar -, que a acusação de imposição de vasectomia é facilmente desmentida pelo fato de que muitos bispos e pastores da Universal, em todos os níveis de hierarquia da Igreja, têm filhos. São mais de 3 mil filhos naturais de membros do corpo eclesiástico”, alega a igreja.
Levando em consideração dados da própria Igreja Universal que apontam um total de 17 mil membros do corpo eclesiástico, pode soar estranho que apenas 3 a cada 17 pastores e bispos tenham filhos.
Na Justiça
Denúncias desta natureza remontam dos anos 90, quando o Brasil acompanhou o crescimento da Igreja Universal. Em março do ano passado, em Angola, o bispo Honorilton Gonçalves, que foi vice-presidente da TV Record no Brasil e atuava como o líder da IURD no país, foi preso por acusação de violência doméstica justamente por ter imposto a vasectomia a pastores que atuavam em terras angolanas. A pena foi suspensa por um recurso, mas a ação segue correndo na Justiça local.
No Brasil há mais de mil ações no Tribunal Superior do Trabalho, todas movidas por ex-pastores. Delas, 105 estão em andamento, e foi criada uma associação com cerca de 500 ex-pastores que processam a igreja. Para além das vasectomias forçadas, os ex-membros da Igreja também exigem direitos trabalhistas. Entre suas alegações, trabalhavam mais de 16 horas por dia, sem carteira assinada, férias ou 13º salário. Eles pedem indenização por danos morais e materiais.
A IURD se defende, apoiada em decisões do TST, alegando que o ofício não pode ser configurado como um trabalho regular, mas como vocação. “Na verdade, oito em cada dez recursos julgados pelos Tribunais Regionais do país reafirmam que o exercício da atividade pastoral em uma igreja não é emprego, mas sim o exercício voluntário de uma profissão de fé e, assim, não está submetido à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O próprio TST, instância máxima da Justiça Trabalhista, tem o entendimento de que os ministros de confissão religiosa, de qualquer crença, não são empregados das igrejas”, diz em nota.
No entanto, em ação civil pública aberta pelo Ministério Público Federal em 2016, e que está em andamento no TST, o entendimento é o inverso. Para o MPT é claro que os pastores não exercem apenas sua profissão de fé, uma vez que podem ser enviados para a garagem ou a faxina - ou mesmo a tarefas consideradas "melhores". Dessa forma, deveriam, sim, trabalhar com carteira assinada e não poderiam ser obrigados a fazer vasectomia. Agora resta acompanhar os desdobramentos dessa centena de ações que correm na Justiça.