Diálogo entre ministros do STF durante sessão da análise dos embargos infringentes mostra uma certa preocupação com a repercussão da mídia tradicional que não deveria ser natural em um órgão como o Supremo
Por Glauco Faria
Na sessão da quinta-feira, 12/9, que analisou o cabimento dos embargos infringentes da Ação Penal 470, um diálogo entre dois ministros foi bastante revelador sobre o que representa o julgamento:
Luís Roberto Barroso – Eu assumi a posição, e pretendo conservá-la, de não pretender convencer ninguém do meu ponto de vista. Eu já votei, expus os meus argumentos...
Marco Aurélio Mello – Vossa Excelência tenha certeza de uma coisa, eu esperava ser convencido por Vossa Excelência.
Luís Roberto Barroso – Não tem problema. Eu então, infelizmente, não fui capaz de convencer Vossa Excelência, embora eu esteja convencido do acerto da minha posição. Feita a ressalva, que me parece pertinente em uma matéria complexa como essa, a verdade tampouco parece ter dono. Mas gostaria de dizer, em defesa do meu ponto de vista e sem demérito de nenhum ponto de vista, que eu, nesta vida, neste caso e em outros, como em quase tudo que faço na vida, faço o que acho certo, independentemente da repercussão, portanto, eu não sou um juiz que me considero pautado pela repercussão do que vou decidir, e muito menos pelo que vai dizer o jornal do dia seguinte, e muito menos estou almejando ser manchete favorável. Eu sou um juiz constitucional, sou pautado pelo que considero certo, correto, embora não me ache o dono da verdade. Porém, o que vai sair no jornal do dia seguinte, não faz diferença pra mim se não for o certo.
Marco Aurélio Mello – Pra mim faz. Dependendo do que sai, pra mim faz. Porque como servidor do meu semelhante, eu devo contas aos contribuintes.
Luís Roberto Barroso – Tampouco me parece irrelevante a opinião pública. Acho que a opinião pública é muito importante em uma democracia. E fico muito feliz quando uma decisão do Tribunal Constitucional coincide com a opinião pública, mas se o que eu considerar certo, justo, e interpretação adequada da Constituição não coincidir com a opinião pública, eu cumpro o meu dever contra a opinião pública porque este é o papel de uma Corte constitucional.
Marco Aurélio Mello – Amém, amém que assim sempre o seja.
Luís Roberto Barroso – A multidão quer o fim desse julgamento e devo dizer a Vossa Excelência que eu também ficaria muito feliz e vou ficar muito feliz quando ele acabar. Mas nós não julgamos para a multidão, nós julgamos pessoas. E, portanto, se a multidão quer acabar, nós precisamos considerar as pessoas. Então, gostaria de saber se nós perguntássemos a uma pessoa, não à multidão, se o seu pai, o seu irmão, ou o seu filho, estivessem na reta final de um julgamento e na última hora se estivesse mudando uma regra que lhe era favorável para atender à multidão, você consideraria isso correto, a resposta seria não. Portanto, esta é minha convicção e por isso voto assim. Eu não estou aqui subordinado à multidão, estou subordinado à Constituição, posso ter a decisão que agrade ou não agrade e repito, não acho que tenha nenhum monopólio da virtude ou o monopólio da certeza, mas tenho o monopólio intimo de sempre fazer o que acho certo, independentemente da multidão.
O trecho acima está gravado no vídeo que acompanha este texto, mas revela algo que nem sempre se pode perceber na transmissão feita ao pela TV Justiça. Quando Marco Aurélio Mello responde a Luís Carlos Barroso que afirma não fazer diferença o que vai sair no jornal do dia seguinte, ele responde: “Dependendo do que sai, pra mim faz. Porque como servidor do meu semelhante, eu devo contas aos contribuintes.”
Curioso saber o que o ministro considera como “contribuinte”. Se for algum dos grandes grupos de comunicação aos quais ele devota sua atenção, talvez seja o caso de lembrar que nem sempre eles cumprem sua função de “contribuir” para o erário. Mas se ele se dirige ao cidadão – talvez a redução dele à condição de mero “contribuinte”, como se simples cliente fosse, não seja mera coincidência – é o caso de se questionar que tipo de procuração o brasileiro deu ao “jornal do dia seguinte”, figura em plena decadência em termos de venda e credibilidade. [caption id="attachment_30962" align="alignleft" width="288"] Ministro Marco Aurélio concede entrevista no intervalo da sessão que analisava o cabimento de embargos infringentes na AP 470 (Foto Nelson Jr./SCO/STF)[/caption]
Essa mídia tradicional à qual Mello faz referência (e, pelo que diz, talvez reverência) parece ser quem pauta boa parte do Judiciário do país. A bem da verdade, não somente o Supremo Tribunal Federal, afinal, há juízes que chegam a fundamentar suas decisões em entrevistas de atrizes da Globo. Mas outro exemplo é mais ilustrativo: o julgamento do coronel Ubiratan Guimarães, ocorrido em junho de 2001, que resultou em uma condenação a 632 anos de prisão por 102 homicídios e cinco tentativas. Mesmo com o resultado, ele recorreu em liberdade, ao contrário de muitos que são pegos por infrações menores e, no ano seguinte, foi eleito deputado estadual por São Paulo, ostentando o número 111, a quantidade de mortos no Massacre. Seu recurso foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, composto pelos 25 desembargadores mais antigos do estado e, mesmo com o relator e o revisor tendo ratificado a validade da decisão dos jurados, outros 20 magistrados o absolveram, alegando que os jurados não haviam entendido as perguntas pretensamente mal formuladas feitas a eles. Não houve indignação da mídia tradicional, não se gritou que o Brasil era o país da impunidade. O julgamento ficou “para a História”, já que Ubiratan faleceu adiante.
Hoje em dia, em tempos de informações dinâmicas que às vezes se sobrepõem e desmentem outras anteriores, ninguém se preocupa com o “julgamento da História”, até porque esse parece ser um tempo distante. O importante é não ir contra o senso comum, ou contra os rótulos que se colocam naqueles que tomam esta ou aquela posição. Tudo é agora, faz-se uma coletânea do que a timeline do Facebook ou do Twitter está falando e pronto, o que eu acho é isso.
Se você defender algum tipo de decisão a respeito do cabimento dos embargos infringentes da Ação Penal 470, poucos vão ouvir seus argumentos. Logo será taxado como petista, “petralha”, “mensaleiro” ou qualquer coisa que o valha. Outros termos menos sofisticados também serão utilizados, claro, afinal, rotulagens são o melhor caminho para se interditar qualquer debate. Alguns vão dizer que essa é uma decisão “técnica”, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal poderes quase místicos de superioridade ético-moral, ainda que tais qualidades só servirão se a decisão estiver de acordo com a do interlocutor. Se for contrária ou perto disso, o STF terá sido “aparelhado”, ido contra os desígnios da opinião pública, do país, estará indo rumo à “desmoralização” etc e tal. A lógica binária adotada por parte da imprensa já se faz visível e, caso a decisão não seja a preferida desta mídia, o Supremo terá perdido o “respeito” adquirido recentemente.
Mas vamos supor que a Corte seja eminentemente técnica, o que afastaria a opinião dos leigos ou de quem não é membro do Supremo, incluindo tantos juristas tão ou mais competentes que os doutos ministros. Se a decisão não fosse política ou não sofresse influências externas, os votos de quem se opôs ao cabimento dos embargos infringentes teriam tão somente um tipo de argumentação relativa restrita ao tema, até porque não se discute ali o mérito da Ação Penal 470, mas sim a validade processual ou não dos recursos. Então, por que os ministros usam de adjetivos em abundância para darem seus votos, desviando a atenção da tal opinião pública com a qual tanto se preocupam? Abaixo, um trecho proferido por Marco Aurélio Mello: [caption id="attachment_30967" align="alignright" width="360"] Marco Aurélio Mello e o então advogado Luís Roberto Barroso, depois da audiência pública promovida pelo STF para debater a antecipação terapêutica do parto em caso de fetos sem cérebro (Foto Elza Fiúza/ABr)[/caption]
Sinalizamos para a sociedade brasileira uma correção de rumos visando um Brasil melhor pelo menos para nossos bisnetos, mas essa sinalização está muito próxima de ser afastada. Cresceu o Supremo, órgão de cúpula do Judiciário, junto aos cidadãos, numa época em que as instituições estão fragilizadas, mas estamos a um passo, ou melhor, a um voto – que responsabilidade, hein, ministro Celso de Mello?
Alguém vê alguma questão “técnica” no argumento acima? Ou somente uma tratativa pretensamente moral (ou moralistóide) que se relaciona não ao ponto em debate, mas a uma lição de fábula infantil aliada a uma nada discreta pressão sobre o ministro que tem o voto final? Quase um chamamento ao linchamento para que se salvem as “instituições”. E partiu do mesmo ministro que disse de forma pouco elegante a um colega: “Vejo que o novato parte para a crítica ao próprio colegiado. Como partiu em votos anteriores”. Como se os membros do STF fossem imunes a críticas ou gozassem da infalibilidade.
Mas, vendo a declaração de Mello, lembrei da primeira página de um jornal que provavelmente o ministro lê, o Valor Econômico do dia 12 que, em uma das chamadas de capa, dizia: “Novatos do STF definem rumo do mensalão”. Talvez isso tenha incomodado um dos membros mais antigos do Supremo, nomeado pelo primo Fernando Collor à época em que ele era presidente. E, quem sabe, tenha faltado a noção de que a decisão de agora não afeta apenas os acusados do caso em si, mas a outros tantos que sejam originários no STF e que não terão direito ao duplo grau de jurisdição.
Para alguns, aparentemente, que se esqueça a injustiça futura, presente ou pretérita ou a garantia do amplo direito à defesa. O importante é executar quem já foi condenado. Uma pena para as instituições e para a democracia.