Como a lógica de guerra operada pelo Estado do Rio de Janeiro nos espaços populares deixa em segundo plano o direito das crianças de aprender e se sociabilizar
Por Artur Voltolini, do Observatório de FavelasEmbora o direito à educação seja garantido pela Constituição de 1988, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e pela Lei de Diretrizes Bases da Educação de 1996, ele vem sido sistematicamente violado pelo Estado nos territórios populares do Rio de Janeiro.
O Observatório de Favelas teve acesso a parte de um dossiê elaborado pelo SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação) e enviado à OAB do Rio de Janeiro que relata violações aos direitos à educação pelas forças do Estado na favela da Maré entre os meses de abril e maio deste ano.
[caption id="attachment_28463" align="aligncenter" width="600"] Poste de rua perfurado por tiros em frente ao CIEP Presidente Samora Machel, na divisa entre as favelas Baixa do Sapateiro e Nova Holanda, na Maré (Foto: Elisângela Leite/Imagens do Povo)[/caption]Um dos casos relata policiais armados pulando o muro do CIEP Operário Vicente Mariano no meio do horário de aulas para revistar as dependências da escola, amedrontando alunos e funcionários, sem apresentar qualquer autorização e sem informar a qual batalhão pertenciam, sob a justificativa de que basta uma denúncia para entrar na escola sem autorização e que as crianças daquela região estão acostumadas a conviver com armas. Os alunos e os professores tiveram que ficar alinhados no corredor enquanto a polícia procurava as armas e as drogas da suposta denúncia. Nada foi encontrado. Depois desse caso a escola ficou fechada por quatro dias letivos.
O mesmo dossiê relata a morte de um estudante em 2011, na frente do CIEP Gustavo Capanema, e diz que duas pessoas foram mortas na frente do CIEP Presidente Samora Machel, entre abril e maio deste ano. São comuns casos da polícia entrar nas favelas da Maré no meio do horário de aulas, estacionar seus blindados na porta das escolas e transformar seu entorno em praça de confronto.
Susana Sá Gutierrez, professora de artes do CIEP Elis Regina desde 2000 e coordenadora do SEPE, conta que percebeu o impacto das ações policiais com o “caveirão” na porta da escola quando dava uma aula sobre literatura infantil, falando de mitos que causam medo como bruxas, vampiros e lobisomens: “O que me impressionou foi que o grande medo dos alunos era do ‘caveirão’.”, conta.
Suzana diz ainda que o medo atrapalha muito no aprendizado das crianças. Elas demonstram dificuldades de concentração, passam a aula toda relembrando as violências sofridas e ficam agitadas na sala de aula. “Como vou ensinar quem foi Miró para quem teve o pai baleado pela polícia?”, pergunta. Na aula da quarta-feira seguinte à violenta operação policial que acabou com 10 mortos na Maré, ela conta que a aula foi um caos. “Todos estavam muito agitados, o tempo inteiro insistiam em falar sobre o que tinha acontecido de madrugada, dos tapas, dos tiros, em facas no pescoço.”, relata.
Susana acredita que as secretarias de educação, municipal e estadual, deveriam procurar o secretário de segurança pública José Mariano Beltrame para resolver essa situação: “A escola não deve ser um lugar de repressão, e sim de formação.”, afirma.
Davi Marcos, 34, fotógrafo e morador da Maré, já teve que mudar seu filho de escola várias vezes: “As crianças ficavam presas dentro do CIEP Elis Regina frequentemente enquanto meu filho estudou lá. Já ficaram 10 dias sem aulas por conta de operações policiais, e não tiveram reposição. O pai de um aluno morreu indo buscar seu filho na escola durante uma dessas incursões policiais, no mesmo caminho que eu fazia para buscar o meu. Se não estivesse um pouco atrasado, poderia ter sido eu a vítima. Tive que tirar meu filho dessa escola por falta de condições mínimas de segurança”.
Uma professora que deu aulas na Maré entre 2010 e 2012, e que preferiu não se identificar, presenciou vários episódios de violência durante os horários de aula. O mais grave foi quando ela estava com uma turma de 30 alunos na quadra da escola quando um helicóptero da polícia deu um voo rasante sobre os alunos desprotegidos atirando em direção às casas da comunidade. Ela também frequentou várias reuniões com a 4ª CRE (Coordenadoria Regional de Educação) onde diziam para os professores que segurança pública era uma questão estadual, e não municipal, e ainda ouvia indiretas dizendo que essas questões eram apenas desculpas dadas pelos professores para não trabalharem.
Mário Miranda Neto, presidente da Comissão de Direito à Educação da OAB/RJ, acredita que ações de inteligência seriam muito mais eficazes para combater o crime em territórios populares: “Somos contra a espetacularização do combate ao crime e da corrida armamentista, o Estado não pode se apropriar dos espaços escolares como espaços de segurança pública. É muito simbólico que durante a ocupação do Alemão o QG do exército tenha funcionado dentro da creche de uma escola”.
Para Mário, quando se opera com a lógica da guerra, qualquer prédio público pode ser requisitado. No Alemão supostamente houve uma requisição do exército, em caráter de ofício. Em ações policiais naturaliza-se que a escola possa ser requisitada, o que intimida diretores e professores. “A escola tem que ser tão preservada quanto o espaço da casa das pessoas. E os profissionais de educação é quem são os responsáveis por aquele espaço. É preciso radicalizar os processos republicanos e democráticos dentro do espaço escolar”, afirma.
Tanto Mário Miranda quanto Susana Sá Gutierrez acreditam que o direito à educação é um direito fundamental, e que ele não pode ser ofuscado em nome do dever do Estado de proporcionar segurança pública. A educação não pode ser refém da segurança pública, assim como não o são a saúde, o transporte e as demais responsabilidades do Estado.