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Cada vez mais pessoas nos EUA creem que Trump foi “ungido por Deus”; soa familiar?

Se lá acreditam que o presidente eleito trava uma "batalha espiritual", imaginem no Brasil, onde o nome do meio de Bolsonaro é Messias

Imagem de Jesus falando com Trump que circula nas redes. Foto: reprodução
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Por Art Jipson, no The Conversation

Tradução Cynara Menezes

Um movimento crescente nos Estados Unidos acredita que o presidente eleito Donald Trump está travando uma guerra espiritual contra forças demoníacas. O próprio Trump afirmou isso no discurso da vitória em 6 de novembro, que a razão pela qual Deus "poupou" sua vida foi para "restaurar a grandeza da América".

Tenho estudado vários movimentos religiosos que buscam moldar e controlar a sociedade estadunidense. Um deles é a Nova Reforma Apostólica (NAR, na sigla em inglês), cujos seguidores acreditam que estão enfrentando uma batalha espiritual pelo controle dos EUA. A NAR é um ramo do cristianismo protestante evangélico.

Os defensores da NAR alegam receber orientação divina para reconstruir a sociedade moderna baseada em crenças espirituais cristãs. Em 2015, cerca de 3 milhões de estadunidenses adultos frequentaram igrejas que são abertamente parte da NAR. Alguns estudiosos estimam que o número de adeptos ativos da NAR pode ser maior, já que pode incluir membros de igrejas protestantes que não estão diretamente alinhadas ao movimento.

Para os evangélicos da NAR, a eleição presidencial é interpretada utilizando uma retórica cristã apocalíptica: um dos candidatos é um guerreiro de Deus –Trump– enquanto a outra é dominada por forças demoníacas –Kamala. A vitória de Trump é vista como um momento crucial da guerra espiritual em que as forças de Deus derrotaram as forças do mal

A NAR surgiu no final dos anos 1990, quando o teólogo C. Peter Wagner popularizou o termo "Nova Reforma Apostólica". Wagner argumentou que Deus estava criando apóstolos e profetas modernos que liderariam a cristandade para reconstruir a sociedade norte-americana. As raízes da Nova Reforma Apostólica remontam ao movimento carismático mais amplo que vê as forças espirituais como uma parte ativa da vida cotidiana.

Esta visão não separa a experiência sagrada do dia-a-dia. Para a ainda maior rede de cristãos carismáticos e movimentos pentecostais que enfatizam uma relação pessoal com Deus, o mundo está cheio da ativa presença do Espírito Santo, de dons espirituais e de experiências divinas diretas. É central para a NAR a crença de que líderes religiosos cristãos devem ser a principal fonte de autoridade política e cultural nos EUA.

Os defensores da NAR argumentam que líderes selecionados recebem a revelação diretamente de Deus, guiando o rumo das igrejas e travando batalhas espirituais contra influências demoníacas, que eles acreditam corromper o comportamento de indivíduos e nações. A NAR advoga uma estrutura hierárquica em que líderes religiosos e seus aliados políticos detêm a autoridade na sociedade.

Eles creem no  "Domínio dos Sete Montes" como uma forma de obter o controle cristão da sociedade através de uma estratégia onde os cristãos se infiltrariam, influenciariam e finalmente controlariam sete áreas-chave –negócios, governo, mídia, arte e entretenimento, educação, família e religião– para promover a transformação cultural. Assim, os proponentes da NAR acreditam que podem estabelecer uma forma pura e verdadeira do que eles acreditam ser uma sociedade governada pela orientação divina e pela estrita adesão às ideias bíblicas.

Lance Wallnau, um proeminente autor, palestrante, influencer e consultor cristão associado à NAR, tem promovido a ideia de que este engajamento, onde líderes cristãos da NAR detêm autoridade através de um governo vinculado à vontade divina, é essencial para o avanço da transformação social. Wallnau tem sido um defensor ferrenho de Trump, apontando-o como uma figura significativa da visão da NAR.

Os seguidores da NAR acreditam que devem se engajar na batalha espiritual, o que inclui orações e ações voltadas para combater as influências demoníacas perceptíveis na sociedade. Esta prática frequentemente envolve identificar “forças do mal” em torno de temas culturais como casamento gay, direitos dos transgêneros e ativismo LGBTQIA+, e trabalhar para desmantelá-las. Um exemplo disso foi a recente série de comícios políticos religiosos comandados por líderes da NAR, chamada de “The Courage Tour”, que tinham como objetivo direto eleger Trump para um novo mandato.

A NAR enfatiza que os cristãos devem esperar ver sinais milagrosos, onde eventos extraordinários, como o fato de Trump ter sobrevivido a uma "tentativa de assassinato", são interpretados para ser explicados apenas pela intervenção espiritual ou divina. Os seguidores do movimento também acreditam na cura baseada na fé e em experiências sobrenaturais, tais como declarações e discursos proféticos.

(Não por acaso, o apresentador de extrema direita Tucker Carlson deu recentemente uma entrevista para o documentário fundamentalista Christianities contando ter sido "atacado por demônios" durante a noite, o que o teria feito se voltar para Jesus. N. T.)

Muitos líderes da NAR e seguidores apoiam Trump, vendo-o como uma figura divinamente escolhida que iria facilitar os objetivos da NAR para a reconstrução da sociedade, acreditando que ele foi ungido por Deus para cumprir uma missão profética.

Eles colocam Trump como um guerreiro contra um "deep state" demoniacamente controlado –e por isso corrupto–, alinhando-se com a ênfase da NAR na batalha espiritual e no domínio cultural como foi explicitado na ordem dos "Sete Montes". Os líderes da NAR concordam com o entendimento de Trump sobre um governo corrupto.

A NAR liderou o comício de adoração "Milhão de Mulheres" em 12 de outubro em Washington, D.C.,  no qual os organizadores buscaram encorajar 1 milhão de mulheres adeptas da NAR a virem orar, protestar e apoiar a campanha de Trump. O evento foi promovido como "o último momento de resistência" para salvar a nação ajudando Trump a ganhar a eleição contra forças obscuras e satânicas.

Diversos políticos proeminentes, parlamentares e membros do judiciário, como o presidente da Câmara Mike Johnson e o ministro da Suprema Corte Samuel Alito, hastearam a bandeira "Appeal to Heaven" da NAR.

Para os evangélicos da NAR, a eleição presidencial é interpretada utilizando uma retórica cristã apocalíptica. Por esta concepção, um dos candidatos é uma força divina, um guerreiro de Deus –Trump– enquanto a outra é dominada por forças demoníacas –Kamala Harris. A vitória de Trump em 2024 é vista como um momento crucial da guerra espiritual em que as forças de Deus derrotaram as forças do mal.

Apesar de sua crescente popularidade, a NAR enfrenta críticas substanciais. Muitas igrejas cristãs importantes argumentam que os ensinamentos do movimento se desviam da ortodoxia tradicional cristã. Os críticos destacam o abuso de autoridade de pessoas que afirmam que Deus está conduzindo suas ações e o potencial abuso de autoridade daqueles que invocam para si papéis apostólicos. Abraçar Trump trouxe preocupações sobre misturar a fé evangélica com a ambição política.

Enquanto Trump era associado a Jesus, Kamala era associada ao diabo. Foto: reprodução

Os críticos sustentam que o apoio da NAR a Trump compromete a integridade do Evangelho, priorizando poder político em detrimento da integridade espiritual. Os acontecimentos em torno dos ataques ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 complicariam ainda mais esta relação, expondo os perigos potenciais de se confundir crenças religiosas com política partidária.

Além disso, a ênfase da NAR na guerra espiritual e na ideia de tomar o controle da sociedade levantaram preocupação em outros grupos cristãos sobre seu potencial de fomentar a mentalidade do "nós contra eles", levando a uma crescente polarização da sociedade.

A Nova Reforma Apostólica representa um desenvolvimento significativo, misturando práticas carismáticas com uma forte ênfase na política e transformação cultural. No entanto, uma larga maioria de estadunidenses discorda que a sociedade deveria ser reconstruída com base em teologia religiosa. Pelo menos por enquanto.

*Art Jipson é professor associado de Sociologia da Universidade de Dayton