Stefan Szymanski, no The Conversation
Tradução Cynara Menezes
O futebol americano tem o The Catch ("a recepção"). O beisebol tem The Shot Heard ‘Round the World ("a rebatida ouvida ao redor do mundo") e o basquete tem The Block ("o bloqueio").
No futebol, é a "mão de Deus" de Diego Maradona o momento do esporte capturado no tempo, cuja menção é capaz de provocar as mais fortes emoções entre os torcedores. Tamanho é o seu legado que, 36 anos após balançar o fundo da rede, a bola envolvida foi vendida em novembro por 2,4 milhões de euros, cerca de 12,6 milhões de reais.
Mas por que esse gol, que a rigor nem deveria ter sido um gol, carrega tanto significado? Como um economista que estuda esporte, sempre acreditei que é preciso compreender a importância cultural para entender a dimensão financeira dos esportes. Este gol foi um dos mais icônicos acontecimentos do futebol por algumas razões.
1. Tudo por conta da polêmica
O gol em questão foi marcado pelo craque argentino Maradona contra a Inglaterra nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986. Era o segundo tempo, nenhum gol havia sido marcado ainda e o time da Argentina estava tocando a bola ao redor da pequena área da Inglaterra.
O meia inglês Steve Hodge tentou jogar a bola para longe, mas tudo que conseguiu foi chutar bem alto, acima do goleiro. Era de se esperar que o goleiro pegasse, especialmente contra Maradona, que tinha 1m65 de altura. Mas de alguma forma a pelota acabou no fundo da rede.
A princípio, parecia que Maradona tinha cabeceado a bola, mas os replays claramente o mostram conduzindo a bola com seu punho fechado. Isso aconteceu três décadas antes do uso do VAR no futebol. Não havia jeito de anular. A visão do árbitro estava bloqueada, e ele olhou para o bandeirinha para auxiliá-lo. Mas o bandeirinha não viu nada e o gol foi validado.
Falando depois do jogo, Maradona disse aos repórteres que o gol havia sido marcado "um pouco com a cabeça de Maradona e outro pouco com a mão de Deus". A frase pegou, e com ela a lenda sobre o gol.
2. Na verdade a questão é o segundo gol
A seleção da Argentina em 1986 não era um grande time. Melhor dizendo, era a combinação de um time comum com o maior jogador do mundo na época, e para muitos o mais talentoso futebolista de todos os tempos.
A Inglaterra teria provavelmente um time melhor se Maradona saísse do jogo. Então foi o que os defensores ingleses tentaram fazer: tirá-lo do campo pelo bem ou pelo mal. O plano da Inglaterra era tornar quase todos os jogadores em campo responsáveis por marcá-lo e tentar impedi-lo de avançar. Eles tentaram, mas era impossível.
Quatro minutos após o primeiro gol, Maradona pegou a bola e, em ritmo acelerado, driblou três zagueiros e o goleiro da Inglaterra para marcar novamente. O gol foi escolhido "o gol do século" em uma enquete feita pela FIFA em 2002.
A Argentina venceria a final daquela que é até hoje conhecida como "a Copa do Mundo de Maradona".
3. Não, a questão é a vingança da Argentina!
Não há como escapar ao contexto político do jogo –ou do gol. Em 1982, a Argentina invadira as ilhas Falklands, ou as Malvinas –o nome que você usa determina que partido tomou na história–, um território ultramarino britânico a 300 milhas da costa argentina. As ilhas são ocupadas pelos britânicos desde 1833, e a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher consolidou sua imagem de "dama-de-ferro" ao mandar tropas militares cruzarem 8 mil milhas através do Atlântico para reaver o território. O Reino Unido argumentou que sua motivação principal era respeitar a autodeterminação dos ilhéus, mas valiosos direitos de pesca e um assento à mesa na administração da Antártida também estavam em jogo. Entre os neutros, havia considerável simpatia pela causa argentina no que era visto como uma ação anacrônica do imperialismo colonial pelos britânicos.
Não há como escapar ao contexto político do jogo –ou do gol. “De alguma forma nós culpamos os jogadores ingleses por tudo que o povo argentino sofreu... Estávamos defendendo nossa bandeira, os meninos mortos, os sobreviventes", disse Maradona em sua biografia
A humilhação dos generais argentinos provavelmente acelerou o fim da ditadura militar e a restauração da democracia na Argentina. Mas alimentou ressentimento contra a Inglaterra –os argentinos acreditam piamente que as Malvinas pertencem a eles, não à Inglaterra– e isso influenciou a preparação da seleção para o jogo de 1986, como Maradona lembrou em sua autobiografia Yo Soy El Diego em 2000:
“De alguma forma nós culpamos os jogadores ingleses por tudo que tinha acontecido, por tudo que o povo argentino sofreu... Nós estávamos defendendo nossa bandeira, os meninos mortos, os sobreviventes."
4. OK, é porque Diego Maradona realmente é o maior
Poucos jogadores marcaram tanto sua presença na Copa do Mundo quanto Maradona. Sua performance na partida contra a Inglaterra permanece como um monumento à sua grandeza, e a frase "Mão de Deus" coloca seu nome na mesma sentença que divindade. Não foi um caso isolado. Todo o torneio se tornou um show de sua habilidade chocante –e ele ergueu a taça no final.
Mas Maradona, que morreu em 2020 aos 60 anos, também foi um gênio problemático. Um filho das favelas de Buenos Aires, ele nunca perdeu a ansiedade de não receber o que lhe era devido. Ele se tornou adicto às drogas –possivelmente como resultado de todos os analgésicos de que precisou para continuar jogando em uma época em que os defensores eram propensos a disputas de bola de esmagar os ossos– e lutou contra o vício em cocaína.
Ele também foi muitas vezes hostil à mídia, foi acusado de agredir uma namorada e de supostamente ter ligações próximas com a máfia. Mas para a maioria dos fãs de futebol, nada disso realmente ofusca sua grandeza como jogador.
Há simplesmente alguns jogadores –um pequeno número, aliás– cujas histórias transcendem o certo e o errado e cujas ações serão para sempre lembradas como os heróis dos épicos da Grécia Antiga. Maradona é um jogador assim. Como Aquiles ou Odisseu, seu nome viverá, lembrado pelo gol da "mão de Deus".
Stefan Szymanski é professor de Sport Management na Universidade de Michigan